Ricardo Leite escreveu:Mas, quem sabe seja esse é o caso em que a "sabedoria primordial", a intuição e a tradição dos mestres cervejeiros, desde lá atrás, trazerem consigo uma "realidade prática": a realidade de formatos especiais e específicos para cada cerveja afetarem os sentidos e, em especial, os aromas de cada uma delas?
Acho que isso certamente ocorreu em alguns casos. Tomo por exemplo o caso dos cálices das cervejas de abadia, que apresentam boca bem larga, aumentando a superfície de contato com o ar e, consequentemente, a taxa de volatilização dos compostos químicos da cerveja, em especial os compostos mais estáveis como ésteres e fenóis.
Por outro lado, o formato também tem remissões eclesiásticas óbvias (o cálice é o copo usado por Cristo na ceia em que dividiu seu corpo e seu sangue com os apóstolos, e é o copo usado no sacramento da eucaristia), de modo que sua adoção pelos monges pode ter sido motivada tanto por razões sensoriais como por razões culturais/simbólicas. Ou por uma mescla de ambos. Em todo caso, acho que um bojo largo com estreitamento de boca produz o mesmo efeito se vc só encher até o ponto de diâmetro máximo da taça.
Agora, em outros casos, acho que as razões culturais/simbólicas falam mais alto. Como no caso das witbier que eu citei, em que o design do copo tem a ver com o espírito de uma cerveja mais rústica, artesanal, "pesada" (em comparação com as lagers claras industriais). Ou no caso de canecões e pints, que eram desenhados para serem copos práticos para acomodar grandes quantidades de bebida e serem facilmente segurados nas mãos. Isso ficou de certa forma associado a comportamentos mais rústicos e diretos, "sem frescuras", que eu acredito que muitas cervejarias tentem agregar à imagem de seus produtos.
Ainda mais porque estamos falando em designs que ocorreram em épocas recentes, já industriais, em que a propaganda era um aspeto importante do negócio cervejeiro. Pensemos também nos copos de vidro, desenvolvidos na Boêmia para valorizar a cor das cervejas pilsner. Talvez o formato alongado do copo também tenha sido pensado para potencializar a delicadeza da aparência e da transparência daquelas cervejas, já que na época as cervejas claras e translúcidas eram novidade. Nesses caso, o formato do copo tem relação com aspectos estéticos da experiência. Ou seja, além dos aspectos eventualmente sensoriais embutidos num design de copo, muitas vezes existem aspectos culturais, simbólicos, estéticos e de marketing que talvez falem mais alto em alguns casos. Não sei. Até porque beber cerveja envolve muito mais do que sentir aromas. Pegar um canecão Mass de um litro de cerveja cheio já é parte da experiência de beber aquela cerveja. Mas não é uma experiência como a do degustador.