Cursos de degustação e dicas práticas

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15 anos 3 meses atrás - 15 anos 3 meses atrás #4863 por Alexandre Almeida Marcussi
Lucas F. Zurwellen escreveu:

Pelo o que o livro me apresentou o Malte é o doce da cerveja que so em uma certa época dos tempos antigos ganhou a adição do lupulo que é responsável pelo amargo e pelas sensações florais da cerveja.

O problema é que não chega a ser tão simples assim. As sensações de uma breja podem ser divididas basicamente em sensações de paladar, de olfato e de tato, e um mesmo ingrediente pode contribuir diferentemente com os três tipos de sensações. Sensações de paladar são os gostos básicos: doce, amargo, ácido, salgado (e, em algumas cervejas envelhecidas, umami, que é uma sensação meio "carnuda" que parece que ntem a ver com a presença de proteínas na língua). Sensações olfativas são aquilo que nós normalmente chamamos de "gosto", mas que na verdade é sempre olfato, mesmo quando sentimos aparentemente na boca. Floral, cereais, herbal, pão, frutas, chocolate, isso tudo é basicamente olfativo, embora um tipo de sensação de paladar possa reforçar as sensações olfativas (por exemplo, um paladar adocicado pode reforçar aromas frutados). Por fim, sensações táteis têm a ver com a sensação na boca e na língua e com a textura do líquido: se ele é grosso, se têm muitas partículas, se tem viscosidade, se é aguado, se é "picante" por causa da carbonatação, se é adstringente etc.

O malte contribui com sensações de paladar, de olfato e de tato. No paladar, ele normalmente dá o gosto doce à cerveja, mas nem sempre. Maltes muito torrados podem contribuir com amargor. Maltes defumados podem adicionar sensações salgadas. No quesito dos aromas, os maltes podem apresentar muitos aromas, dependendo do seu grau e método de torrefação: pão, cereais, mel, frutos secos, caramelo, chocolate, café, queimado etc. Maltes defumados apresentam aromas de fumaça (que, no entanto, também podem vir por causa de subprodutos da levedura). Maltes do tipo cristal normalmente apresentam aromas de frutas secas, como uvas passas ou ameixas. Por fim, o malte pode contribuir para tornar a textura mais "encorpada" (normalmente pelas proteínas em suspensão), mas certos tipos de malte podem também trazem uma certa sensação de secura. O problema, que torna a coisa mais complicada mas também muito mais divertida, é esse: tudo isso pode ser malte.

O mesmo ocorre com o lúpulo. No quesito das sensações de paladar, a principal contribuição do lúpulo é realmente o amargor, que advém da isomerização dos ácidos alfa durante a fervura do mosto. Mas pode haver uma certa sensação de acidez cítrica associada. Nos aromas, cada variedade de lúpulo possui um aroma específico. Tudo mais ou menos remete a "cheiro de planta" (o que talvez seja a forma mais genérica de descrever o aroma do lúpulo), mas os aromas podem ser divididos de forma meio esquemática em florais (aromas de flores), herbais (aromas que remetem a pinho, menta ou folhas verdes), resinosas (aromas que remetem a resina ou madeira), cítricos (aromas que remetem a limão, laranja, grapefruit), frutados (laranja, grapefruit, frutas vermelhas, às vezes nuances de maracujá) e condimentados (ervas finas, temperos, um certo apimentado etc.). Depende da variedade e também do solo onde ela foi cultivada (por isso, os fatores de terrier se manifestam principalmente nos lúpulos). No quesito das sensações táteis, o lúpulo pode (especialmente se usado em excesso) dar uma certa sensação adstringente um pouco "dura" ou "áspera" na boca. Assim como com o malte, tudo isso pode vir do lúpulo.

Esses são sabores primários (vindos do malte ou dos lúpulos). As sensações secundárias normalmente estão associadas às atividades da levedura e a eventuais adições na receita como especiarias, frutas ou ervas. Os aromas da levedura são os mais variados possíveis: podem ser aromas de fermento de pão, podem ser aromas frutados, podem ser aromas de especiarias (como cravo, principalmente, mas às vezes sensações de pimenta ou anis também), podem ser aromas animais (couro, cabra, cavalo), e podem também ser uma série de off-flavors mais ou menos indesejáveis dependendo do estilo. Tem um monte de coisas associadas à levedura. E há sensações de paladar, como os vários ácidos produzidos pela levedura, bem como sensações táteis como a do álcool (o principal produto das atividades da levedura).

Essa complexidade é o que, para mim, torna as cervejas tão interessantes. Esses são apenas algumas das sensações que eu conheço (e consigo identificar), mas tenho certeza de que existem muito mais nuances a explorar, e é isso que torna tudo tão envolvente no mundo das cervejas.

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Ultima edição: 15 anos 3 meses atrás por Alexandre Almeida Marcussi.
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15 anos 3 meses atrás #4864 por Gustavo Almeida
Fábio (Guima) escreveu:

Eu às vezes acho que viajo, sinto uns aromas muito inusitados, mas creio que não se trata de sandice, esse papo de "sensação organoléptica" é muito pessoal e subjetivo e o que se sente está estritamente relacionado a esse "bando de dados".


Isso eu já percebi uma vez, tive certeza que senti um aroma em uma cerveja (não lembro qual), do começo ao fim, e nas resenhas ninguém sequer mencionou tal aroma. Achei que estava louco.

Valeu Guima e outros pelas considerações. Outra dica que li pelo fórum é tomar duas cervejas das quais se sabe um sabor destacado, para poder treinar a diferenciação.

Abraços
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15 anos 3 meses atrás #4865 por Alexandre Almeida Marcussi
Gustavo Almeida escreveu:

tive certeza que senti um aroma em uma cerveja (não lembro qual), do começo ao fim, e nas resenhas ninguém sequer mencionou tal aroma.

Cara, é importante vc se desprender das resenhas do pessoal do ranking se quer evoluir como degustador. São resenhas opinativas e pessoais e, como tal, são muito subjetivas. No começo eu tb tomava uma breja e corria para ver a opinião da galera; com o tempo, comecei a perceber que era muito mais produtivo beber, escrever minha avaliação e só depois entrar no site.

As pessoas muitas vezes estão tão sugestionadas a sentirem certas sensações numa breja (seja por causa do estilo, seja por terem lido avaliações) que frequentemente deixam passar coisas evidentes. E as notas tendem a se homogeneizar quando vc consulta as avaliações alheias antes de dar o seu veredito. Além do quê, muitas vezes vc deixa de identificar um certo aroma simplesmente porque não sabe denominá-lo, não sabe que aquilo pode existir. Avaliações e degustações técnicas feitas por degustadores profissionais seriam interessantes para vc beber comparando, mas infelizmente não conheço nenhum lugar onde se possa ter acesso a isso.

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15 anos 3 meses atrás - 15 anos 3 meses atrás #4874 por Alexandre Almeida Marcussi
Comentando com mais calma agora, Gustavo, pela minha experiência pessoal, acho que esse processo de aprimorar a degustação tem três variáveis de igual importância: prática, estudo e concentração. É só com a prática que vc vai realmente aprimorar seus sentidos e saber perceber cada vez mais coisas. Prática é beber cervejas diferentes, é claro, mas não só. Eu acho que cozinhar e comer coisas diferentes também são ótimas formas de praticar o paladar. Como disse o Guima, beber vinhos também pode ser uma prática. Mas simplesmente prestar atenção aos aromas ao seu redor já é algo. Quando estiver andando por aí, comece a prestar atenção aos aromas e tentar identificar e nomear o que vc está sentindo. Uma das maiores dificuldades não é sentir um aroma, mas saber nomeá-lo, é ter o vocabulário para descrevê-lo. Para mim, o estudo ajuda nisso, e deve ser complementar à prática, pois praticar desperta interesses em certos temas, enquanto o estudo te dá vocabulário e conhecimento técnico com o qual vc poderá depois voltar às cervejas e procurar por mais coisas. E a concentração é fundamental se vc quer degustar mais profundamente. Não adianta beber casualmente no bar enquanto conversa com os amigos sobre o campeonato brasileiro; para extrair o máximo de que vc é capaz, é preciso se concentrar, seguir uma "rotina" de degustação, procurar ativamente certos aromas que vc sabe que poderiam estar presentes naquela breja etc. Tudo isso é complementar, ao meu ver.

Existem cursos de formação e treinamento de degustadores de cerveja, que normalmente são feitos em instituições especializadas (o Brasil deverá ter um em breve trazido pela Cilene Saorin) ou dentro das macrocervejarias como forma de treinamento de seus painéis de degustadores. Essa é, obviamente, a forma mais completa e segura de aprimorar suas capacidades. Mas há outros métodos. Uma das coisas mais importantes, quando vc não pode recorrer a cursos como esses, é saber selecionar leituras e fontes. Existe muita desinformação na internet, de modo que é preciso saber de fontes confiáveis para ter um lugar por onde começar. Uma boa leitura pode ser um começo sólido. Eu sugeriria um livro que estou lendo agora, chamado Tasting Beer, do Randy Mosher. Acho que é o livro mais detalhado no tocante a degustação de cervejas disponível por aí.

Outra excelente fonte é a FlavorActiv, que é uma empresa britânica que produz materiais para treinamento de degustadores. O site da empresa tem coisas bem legais, vale a pena visitar. Eles produzem umas cápsulas diretamente solúveis na cerveja, com compostos químicos que exalam certos aromas normalmente encontrados em cervejas. Normalmente são aromas secundários, associados à levedura ou mesmo a contaminações externas. Tem vários off-flavors, o que é muito útil, porque são compostos que vc não vai encontrar consistentemente num determinado rótulo (justamente porque são defeitos e indicam problemas de produção que são rapidamente sanados nas cervejarias, ou então indicam problemas no acondicionamento daquela garrafa específica). As cápsulas são caríssimas; só compensa se juntar uma puta galera para comprar algumas, mas a boa notícia é que, junto com as cápsulas, eles também produzem as "flavor files", fichas de especificações técnicas de cada um desses aromas, que dizem as sensações normalmente associadas a cada substância, as prováveis origens dentro do processo produtivo, os limites mínimos de percepção, o nome e fórmula química etc. Só de ler as descrições e, principalmente, as sensações associadas, vc já pode começar a procurar e encontrar essas características nas cervejas que vc toma. O melhor disso tudo é que todas as flavor files são disponibilizadas gratuitamente para download aqui .

Por fim, uma terceira fonte interessante é o guia de estilos do Beer Judge Certification Program, que pode ser baixado gratuitamente aqui . O guia de estilos é especialmente útil porque lista, em linguagem técnica, todas as características normalmente esperadas nas cervejas de um determinado estilo. É o parâmetro usado para avaliar cervejas nos campeonatos promovidos pelo órgão. É um ótimo treino vc ler a descrição de um estilo e depois tomar uma cerveja daquele estilo; se vc pegar um bom exemplar (eles até sugerem alguns por estilo), conseguirá identificar boa parte das características mencionadas. E também terá uma boa ideia do leque de variedade possível dentro de cada estilo, podendo perceber como uma determinada breja ocupa um certo nicho ou proposta dentro das possibilidades daquele estilo.

A ideia de degustar comparativamente pares de cerveja para perceber por contraste uma característica é bem legal; o difícil às vezes é saber de antemão quais rótulos possuem quais características para montar os contrastes. Acho que podemos usar esse tópico para coletarmos algumas sugestões de degustações contrastivas. Eu já adianto uma: Heineken vs. Kaiser, para diferenciar o aroma de banana na Heineken do aroma de maçã vermelha na Kaiser.

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Ultima edição: 15 anos 3 meses atrás por Alexandre Almeida Marcussi.
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15 anos 3 meses atrás #4885 por tiago lucas
Muito boas as indicações. Interessantes as fichas do flavourfile

Acho interessante a maneira que nas degustações se juntam dois prazeres bem distintos, por um lado um prazer fisiológico, instintivo: matar a sede ou a fome com aquilo que fomos (e somos), de diversas formas, condicionados a gostar; e por um outro um prazer intelectual, um prazer de trazer a luz idéias - de 'conhecer' os sabores e aromas em suas singularidades.
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15 anos 3 meses atrás #4886 por Alexandre Bamberg
Outra coisa que eu acho legal é pegar cervejas do mesmo estilo de várias marcas e diferentes países daí dá pra ver as diferenças de cada uma e atéas peculiaridades em processo e receita de cada cervejaria.
Não tem treino melhor que comer ou cheirar as matérias-primas, mas eu sei que é muito difícil encontrá-las.
Uma coisa é certa, não forçar a mente, é muito treino e tempo, só assim sua cabeça familhariza-se e numa hora você vai identificar os aromas e sabores.
Como muitos falaram, por enquanto beba sua cerveja tranquilo sem se preocupar muito com isto.
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