Querido diário, esta noite não consegui dormir...
Subitamente, sem muito saber quando tropecei na barreira do sono, vi-me diante de meu PC a avaliar uma Colorado Cauim, breja que por décadas me olhava pretenciosamente da prateleira do mercado sem jamais receber um olhar carinhoso como resposta. Em algum momento, o inconsciente havia fabricado a memória na qual eu finalmente olhava com ternura para a garrafa de rótulo amarelo e me derretia diante da audaciosa brasilidade que permite mesclar lager com mandioca e sair ilesa: o afeto havia sido correspondido! Disse certa vez o poeta que 'o amor não correspondido sempre resultará em tragédia'; de repente, todo o universo torna-se suspenso diante da personificação do amor e suas inevitáveis fatalidades: "O que é o amor?" Perguntará o destemido estudante de filosofia em seu primeiro semestre. Recorro ao soneto de Camões que afirma, logo nos primeiros versos: "Transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar" e ponho-me a pensar nos velhinhos que passam cinco, quiçá seis décadas juntos e em como esses pobres diabos definiriam o sentimento que sentem um pelo outro. Momentos inesquecíveis virão à baila: beijos, danças, brigas e reconciliações, declarações e certidões, sacramentos e geração de seres que transcendrão a existência de cada um deles; finalmente definirão o amor como a lembrança que têm daquilo que viveram juntos. Ora, somos um compêndio das memórias e momentos que vivemos; quando amamos, compartilhamos nossas lembranças mais profundas e marcantes. Tornam-se os amadores uma cousa única, mesclada e amorfa que não poderá mais ser apagada sem destruir parte daqueles que a compuseram. No memorável filme 'Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças' (2004, Eternal Sunshine of the Spotless Mind), de Michael Gondry, com roteiro co-assinado por Charlie Kaufman, as personagens Joel e Clementine tentaram deletar algo que já era parte de si mesmos, sem perceber que estavam destruindo a si próprios... Eles falharam miseravelmente!
Mas o que vim eu fazer aqui? Estou certo de que havia uma bebida a ser avaliada? Era uma lager de fermentação a frio? Será que ela realmente continha mandioca em sua composição? Será que era detectável ao paladar? Bons brasileiros devem realmente saudar a mandioca? Tenho certeza que vim até aqui para escrever sobre uma breja. Lembranças estranhas nessa tarde em que sonho, filmes, romances e amores não correspondidos pairam no ar.