A Theobroma é a versão da Dogfish Head para uma bebida asteca, um fermentado à base de cacau cujos restos foram encontrados em Honduras e passaram por uma análise química que revelou traços de cacau, chili, mel e annatto (uma semente aromática). Trata-se de uma reinterpretação livre da cervejaria inspirada na arqueologia, entenda-se; mas, afinal, não se trata sempre de uma reinterpretação quando falamos em conhecimentos históricos e arqueológicos? Neste caso, ela destoa bastante do que normalmente esperaríamos de uma cerveja que leva cacau (em pó e em lascas); em primeiro lugar, porque tem coloração clara, e também porque tem um perfil que se destaca muito mais pelo frescor do que pela torrefação, praticamente ausente. É uma cerveja extremamente inusitada, tanto na sua receita como nas suas características sensoriais, mas se eu tivesse de aproximá-la de algum estilo existente, diria que é semelhante a uma tripel. Na taça, apresentou uma bonita cor dourada clara e transparente, com bom creme branco, persistente. Apresenta uma enorme complexidade de aromas, presumivelmente advindas tanto das leveduras quanto dos vários ingredientes adicionados à receita (os mesmos identificados nos restos arqueológicos), com muito frescor. Há notas evidentes, suponho que de ésteres, remetendo a chiclete e Fanta uva, acompanhados de um intenso mentolado (que se combina ao chiclete e dá a impressão de chiclete de menta) e de algo condimentado e cítrico, que lembra sementes de coentro. Um pouco mais suaves, percebem-se notas de carambola, e um toque mais rústico e salgado sugerindo sal de frutas (indicando possivelmente atividade de leveduras do gênero Brettanomyces) complementa sua complexidade e quebra corretamente o delicado frescor. O malte é bem presente no sabor, com uma forte riqueza final remetendo a pão e um toque de mel - que pode também vir talvez do mel usado como ingrediente, diga-se de passagem. O lúpulo aromático é mais discreto no conjunto, mas pode ser percebido e apresenta notas cítricas de limão. Muito complexo, e muito diferente de tudo o que eu já havia provado em uma cerveja. Se a intenção da Dogfish Head era surpreender, hell yeah, eles conseguiram. Predomina a doçura maltada, mas bem equilibrada por uma acidez bem relevante, com uma amargor mais suave e um toque salgado até considerável. Essa acidez e salgado, aliada ao aroma de Brettanomyces, me fez considerar a possibilidade de haver fermentação espontânea, ainda que suave, nesta cerveja. A entrada é doce e ácida, com um final em que o amargor equilibra a doçura dominante, com um retrogosto de média duração com pão, menta e carambola. O corpo é leve para médio, com textura acetinada, e ela tem uma agradável leveza na boca - tanto que eu me surpreendi quando constatei o teor alcoólico de 9%, que não se adivinha. Gentilmente compartilhada conosco pelo confrade Jon, esta Theobroma é uma experiência singular, uma bebida que decididamente é uma cerveja (e não um fermentado asteca de cacau), mas bem diferente de todas as outras cervejas que eu já provei. Suponho que os ingredientes adicionados à receita tenham muito a ver com essa peculiaridade, mas é muito difícil identificar positivamente qualquer um deles. Acho plausível que o processo de fabricação inclua elementos de fermentação espontânea (embora a cervejaria não mencione nada a respeito), mas eles são bem discretos, quebrando o frescor dominante de forma sutil e tornando o resultado final ainda mais complexo. Se "Theobroma" é a "comida dos deuses", então os deuses astecas agradecem a oferenda!