Artigo exclusivo para o BREJAS, por James Thompson*
Indo de carro nas famosas Curvas de Santos, de Roberto Carlos, não foi no plano original. Matt Brynildson e eu tínhamos programado um almoço em Ribeirão Preto, com Marcelo Carneiro Rocha, da Cervejaria Colorado. Uma vez que o Marcelo havia morado no Estado de Texas, uns anos atrás, achei que a visita seria uma ótima oportunidade para saborear uma Demoiselle ou Cauim, ao som das músicas de Jerry Jeff Walker ou de Johnny Cash. Mas, com todos os voos cancelados por causa da neblina que durou a manhã inteira, uma visita ao Guarujá seria nosso “plano B.” Então, o motorista dirigiu ao longo da estrada sinuosa, com Matt dedilhando sua história com o rodar dos quilômetros. O tempo, lá fora, despejava uma chuva fina, e a temperatura estava fresca.
Matt Brynildson é, claro, o brewmaster renomado da Firestone Walker Brewery, em Paso Robles, Califórnia, e havia vindo ao Brasil para dar uma palestra no evento Brasil Brau. Antes de ter se mudado para a Califórnia, Matt foi o chefe de produção na Goose Island Brewing, de Chicago.
Agora, isto era minha praia: nós, do Meio Oeste americano, somos tudo sobre tradição e conservadorismo—e nao deixamos por menos quando se fala da nossa cerveja. “Meu avô me deu minha primeira bebericada de uma cerveja comum, tipo lager, numa reunião familiar, quando eu ainda nao era alto o suficiente para pegar uma cerveja da mesa,” disse Matt, “e não foi na universidade (ele me disse que estudou química) que eu realmente adquiri apreciação verdadeira para as cervejas artesanais. Eu acreditei que soubesse o que era uma boa cerveja, desde o início.”
Estávamos, finalmente, saíndo do trânsito urbano, e começamos a ver verde na beira da estrada, uns restaurantes Frango Assado. Pedi ao nosso motorista que desse uma parada num restaurante com uma cara boa, e comprei umas garrafas das novas cervejas Bohemia—a Abadia e a Oaken.
Matt contou mais de sua vida enquanto sacolejávamos pela estrada: A cervejaria artesanal virou “uma obsessão,” e numa viagem para a Europa, na época da universidade, mostrou ao conterrâneo do Meio Oeste que “gelada” não era o único adjetivo que uma pessoa poderia atribuir a uma cerveja. E desnecessário dizer que as várias festas das repúblicas foram regadas por umas das cervejas artesanais do Matt.
“Quando eu começei a produzir cerveja, as variedades de lúpulo norte-americano já estavam sendo cada vez mais aceitas na produção das cervejas artesanais—nós chamávamos aquelas cervejas, naquela época, de microbrews, e muito da diferenciação foi o caráter destacado do lúpulo que aquelas cervejas tinham. A maioria de nós começou a tentar copiar os estilos europeus tradicionais, mas não tínhamos acesso ao lúpulo fresco da Europa. As minhas primeiras experiências recriando English bitters, ou lagers alemãs, usando lúpulo importado, ficaram sem brilho, para ser sincero, porque o meu fornecedor local não tinha lúpulo fresco importado.
“Quando eu produzi as mesmas receitas com as variedades frescas norte-americanas, as cervejas pegavam vida. Muitos cervejeiros norte-americanos passaram por isso, na mesma época, e nunca mais olharam para trás. Os lúpulos norte-americanos eram abundantes, em conta, empacotados e armazenados bem, e facilmente disponíveis. A chave a tudo isto foi que nós não estávamos presos às tradições ou às regras; estávamos criando a melhor cerveja possível, utilizando os materiais disponíveis. Estávamos bebendo cervejas importadas, e produzindo cervejas baseadas, de maneira geral, no que estávamos saboreando, utilizando ingredientes que tinhamos acesso. Mais tarde, estas cervejas interpretativas tornaram-se aceitas como estilos novos. Para isso ter acontecido, os consumidores tinham que aceitá-las e apoiá-las. Este fenômeno tem enraizado.”
E, atualmente, Matt está fazendo grandes lotes de cerveja lá na Firestone-Walker, uma cervejaria californiana inovadora, sobre a qual os entusiastas da cerveja já têm conhecimento.
“Eu tenho controle criativo total sobre o processo de produção na Firestone,” disse ele do seu banco, enquanto pegávamos uma curva após outra, descendo em direção à Baixada.
Ele tinha me dito, lá em São Paulo, que a Firestone Walker começou de uma maneira similar – replicando os estilos ingleses. O Double Barrel Ale, a marca registrada da companhia, por exemplo, é um English Pale Ale, fermentado no sistema tradicional oak barrel union, usando os lúpulos Styrian Golding e East Kent Golding. Mas, com o tempo, eles acrescentaram mais cervejas, mais estilos da Costa Oeste dos EUA, inclusive American Pale Ale, lupulado com Cascade e Centennial, e IPA lupulado com Simcoe e Amarillo. “Estes são os estilos que têm o maior momentum no mercado norte-americano de cerveja,” ele disse. “O apreciador perspicaz da cerveja artesanal norte-americana está procurando por estas cervejas — nós os chamamos, carinhosamente de “hop heads,” e eles estão crescendo como parte da população que consome cerveja.”
Eu disse, então, que ele se preparasse pois ia ter muitos “hop heads” no show Brasil Brau, no dia seguinte.
Ele me disse que usar lúpulo oriundo de regiões produtoras diferentes foi, do ponto de vista dele, uma das melhores maneiras de diferenciar as cervejas num portifólio, e criar sabores novos e originais.
Esta foi minha chance para minar o cérebro de um dos líderes do movimento da cervejaria artesanal norte-americana. Eu perguntei o que ele quis dizer com “novas e originais.” “Bom! Por exemplo, eu adoro a idéia de um pilsner dry-hopped com lúpulo cítrico norte-americano,” ele disse.
Carvalho
“Na Firestone,” disse Matt, “temos essencialmente enfocado na categoria Pale Ales, e temos produzido uma série de cervejas centralizadas nos Pales altamente drinkable. A Nossa marca registrada é um English Pale Ale. Nós executamos a fermentação primária desta cerveja em carvalho americano novo, a cada semana, para cada lote.”
Agora, isto foi algo que eu nunca tinha ouvido falar. Eu perguntei dele se isto não foi muito trabalho.
“Sim, isto é único no setor. Mas o que é mais importante é que isto é um verdadeiro elo à produção de Pale Ales em Burton-on-Trent (Inglaterra) e é a nossa maneira de honrar aquela tradição.
Este pareceu um bom momento, como muitos, para abrir uma Oaken, e eu consegui servi-la sem derramar nenhuma gota. É uma pena beber cerveja num copo de plástico, mas a paisagem e a oportunidade de bater um papo com um cervejeiro tão renomado como Matt compensou em muito aquele pequeno pecado.
Eu estava interessado no elo entre o Mundo Novo e o Velho — o jeito que um cervejeiro renomado como Matt estava construindo uma ponte entre a tradição e a inovação. Começando a conhecer mesmo a cerveja via as lagers leves tradicionais; mergulhando nas tradições européias, e, depois, fazendo seus próprios estilos enquanto honrando as raízes. Achei isto um fenômeno bem americano, e tem sido repetido em tudo, do futebol ao vinho.
O que me fez pensar: vários cervejeiros de Santa Catarina e Rio Grande do Sul produzem suas cervejas no meio dos campos de vinho. O Matt — na Califórnia — não estava fazendo a mesma coisa? Perguntei isto para ele.
Ele disse, “Quando a época vem, tipicamente por volta da colheita de uvas, chamamos o nosso vizinho, que faz vinhos, na região de Paso Robles, e ele conduz a mistura da nossa cerveja maturada no barril. Nós, cervejeiros, produzimos os componentes, e os produtores de vinhos juntam uma mistura com o objetivo de produzir algo completamente único, e, se Deus quiser, mais interessante que a mera soma dos ingredientes. É uma experiência ótima de aprendizagem, e nos conecta aos nossos companheiros cientistas da fermentação. A cerveja fica com níveis altos de álcool, e envelhece bem. Ela tipicamente expressa bastante caráter de carvalho.” Neste ponto, ele toma um gole final de Oaken, da Bohemia, e eu abri a Confraria, com suas notas cítricas. “Parece a mim que quanto mais tempo nós estamos nisto, o mais nossos admiradores querem que nós experimentemos e criemos cervejas novas e interessantes. Isto mantém as coisas interessantes.”
Lúpulo
Tínhamos passado Cubatão, com suas fábricas de químicos, adornadas com estruturas complicadas de tubos desaparecendo no mato verde, e estávamos descendo na direção do oceano—uma topografia não tão diferente de umas das regiões de lúpulo, do Estado de Oregon, nos Estados Unidos.
Não preciso de muito pra pensar em lúpulo, e perguntei ao Matt qual o papel do lúpulo nos trabalhos dele para fazer cervejas interessantes.
Ele experimentou a Confraria, e disse “O lúpulo norte-americano tem sido chave para o movimento da cerveja artesanal, nos Estados Unidos. O caráter de lúpulo define os estilos norte-americanos, como são reconhecidos pela maioria dos concursos importantes, e pelos juízes da cerveja, mundialmente. As variedades norte-americanas de lúpulo são primordiais.”
Ele levantou seu copo de plástico e aprovou. “veja, por exemplo, a diferença entre o English Pale Ale e o American Pale Ale, que é, essencialmente, um English Pale Ale produzido com lúpulo norte-americano, com Cascade ou Centennial, e lupulado de forma mais agressiva. Não resta dúvida que, quando você experimenta os estilos, lado a lado, a lupulagem é o que os distingue.”
A Escola Americana
Pela hora que paramos na praia de Guarujá, o sol havia se posto. Inverno, chuva fina, nao havia nenhuma pessoa andando no calçadão de biquini, e a vasta maioria das lojas estavam fechadas. Uma brisa fresca de inverno soprou do oceano. Mas pouco me importei com tomar sol — eu só quis andar na praia e ouvir mais sobre cerveja.
Foi então que a pergunta simplesmente escapou da minha boca: “Então, existe – ou não existe – uma tal Escola Americana?”
Matt sorriu. “Eu acho que a escola americana da produção de cerveja é uma filosofia de experimentação e exploração dos limites. É uma fusão dos estilos tradicionais do Velho Mundo, ingredientes novos e técnicas inovadoras. Você até pode dizer que a escola americana começou com a produção das lagers norte-americanas. Isto usou a tradição alemã da lager e aplicou açúcar adjunto, taxas menores de lupulagem, e novas tecnologias de fermentação, e criou um estilo novo que o mundo inteiro tem abraçado. Talvez esta experimentação tenha ido muito além, ou pelo menos tenha começado antes de acabar, em relação a criar algo novo e interessante. A nova escola americana é tudo sobre sabores únicos, ingredientes não-tradicionais, caráter de lúpulo interessante e distinto, e a infusão de novas técnicas de fermentação. É natural dizer que isso virou um fenômeno regional que traz ingredientes locais ao jogo. Os cervejeiros são, pela natureza, cientistas e experimentadores. Eu acho interessante que os mesmos cervejeiros que abraçam a lager de estilo americano demoram para aceitar as cervejas artesanais americanas, e a natureza inovadora do movimento… só posso achar que é só uma questão de tempo…”
Há algumas vantagens de ser norte-americano no Brasil. Uma delas é que você pode ter a praia só pra você quando uma brisa de inverno sopra no ar. E nós caminhamos no crepúsculo conversando sobre nosso assunto predileto, e matando a Confraria.
Brasil
Meses depois de termos regressado ao carro, onde o motorista ansioso nos aguardara, e de ter tomado aquelas curvas de volta a São Paulo, eu recebi um e-mail do Matt. Ele tinha escrito sobre sua visita e palestra na Brasil Brau, e dito: “Estou impressionado pelo que está havendo na área das cervejas artesanais no Brasil. Ver aquuele entusiasmo e aquela vontade de experimentar foi animador. E foi incrível ver todos aqueles cervejeiros artesanais dando amostras na Brau Brasil. Mal posso esperar para voltar!”
De volta a minha casa em Minas, cliquei ENVIAR, em resposta ao e-mail dele, e conclui que adoraria ter a chance de falar com ele novamente. O conhecimento ambulante que adquiri com as nossas conversas foi enriquecedor. Em um momento da sua visita, ele me disse, “A arte da produção da cerveja é tudo sobre digerir o que você observou e expressá-lo de maneira nova e significativa, de forma que outras pessoas, de atitude similar, possam facilmente simpatizar com isto .”
E isto é exatamente o que parece estar havendo — nas duas Américas.
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* James Thompson é o representante no Brasil da USA Hops. Seus artigos têm sido publicados nas revistas Latin Trade, The Saint Louis Post-Dispatch, Soybean Digest e ABEF. Thompson escreve regularmente também para o BREJAS, com artigos exclusivos.
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