Alguns dos eventos mais surreais das existências dos Confrades do BREJAS aconteceram naquela noite de 2004, na cidade belga de Brugge. O que você vai ler a seguir é mais um deles, uma espécie de continuação da história Brugge e o Enigma, já publicada neste blog.
A fama de misteriosa da cidade flamenga é antiga. Então um movimentado centro de comércio da região de Flandres, assistiu sua importância estratégica declinar no início de 1500, quando o canal Zwin, que fora responsável pela imensa prosperidade da cidade, começou a ficar obstruído pelo lodo. Inalcançável pelo mar, Brugge foi logo ultrapassada por Antuérpia como pólo comercial dos Países Baixos. Com a repentina perda da importância estratégica, a cidade foi praticamente abandonada, razão pela qual o seu centro histórico medieval até hoje se encontra preservado. No romance “Brugge, a Morta”, de 1892, o escritor neerlandês Georges Rodenbach a descrevia como uma cidade adormecida, triste e misteriosa, nostálgica do seu glorioso passado. Na verdade, Brugge servia de espelho dos estados d´alma do personagem principal, que acabara de ficar viúvo e perdera o seu encanto pela vida até se enrabichar por uma bailarina jeitosa que tinha tudo a ver com a falecida, sabem como é… Como já dizia minha avó, há de existir sempre um chinelo velho destinado a um pé doente.
O tempo passou, Rodenbach virou nome de cerveja, e eis que nós — os Confrades brejeiros Daniel C., Ricardo Sangion, Guilherme Scalzilli, o “suíço” Michel Wagner e este escriba — flanávamos por Brugge naquele agosto de 2004, nadando em cerveja belga. A noite se avizinhava, uma chuva fina e chata persistia e junto com ela a vaga lembrança da necessidade de arranjarmos uma alcova qualquer pra passarmos a noite, antes que os nossos estados etílicos impedissem qualquer outra iniciativa mais sensata.
Não me lembro bem como a escolha se deu, nem quem escolheu, nem porquê. O fato é que acabamos num hotelzinho do centro, com um bar embaixo (sim, pode ser que a resposta do “porquê” tenha sido o bar). A mocinha nos disse que a recepção fechava às onze, e nos pediu que anotássemos um código secreto, o qual deveria ser digitado na fechadura eletrônica da entrada para abri-la, se por acaso quiséssemos entrar depois desse horário. O papelucho com o código ficou no bolso de algum de nós, e saímos pra retomar os trabalhos.
Creio ter sido lá pelas duas da manhã que demos por encerradas as atividades, completamente desprovidos das menores condições de continuar a entornar o caneco, mesmo se tratando das melhores cervejas do mundo a preços módicos. Saímos meio trôpegos do lendário ´t Brugs Beertje, enfrentamos a chuva que agora recrudescia mais grossa, encontramos o hotelzinho por entre a bruma, miraculosamente digitamos o código correto e entramos. Havíamos alugado um quarto em que coubemos nós cinco e, em uma fração de segundo, cada Confrade, desmaiado, já fazia parte integrante e indissociável da cama que lhe cabia.
Ninguém se lembra de quanto tempo se deu. Podem ter-se passado segundos ou horas. O fato é que fomos acordados por batidas desesperadas na grande janela do quarto e, com algum espanto, topamos com um fantasmagórico vulto grudado ao vidro pelo lado de fora, na chuva inclemente. Mesmo sob o acentuado estado de confusão mental que nos acometia, demos conta da provável gravidade da situação, ainda mais porque o nosso quarto ficava no segundo andar do prédio. De alguma forma o sujeito havia escalado até lá. E agora implorava, sôfrego, que abríssemos a janela.
“Decôda, decôda”, era o que ele dizia, insistentemente. Qualquer que fosse a nacionalidade do rapaz e o idioma que ele falava, o certo é que ele queria entrar. Magnânimo, o Confrade Michel Wagner, que ocupava a cama mais próxima, abriu o janelão do quarto e acolheu o personagem no mais sonoro e castiço português: “Entra aí, velho!” E ele entrou, pingando de chuva. Nem olhou pra cada um de nós. Dirigiu-se rapidamente à porta do quarto e saiu agradecendo “tenquiú, tenquiú”, como num mantra. O álcool belga, porém, não nos permitiu sequer comentar o episódio no momento em que aconteceu. Em segundos estávamos de novo fora de combate e de cara no travesseiro.
Foi apenas no buffet do café da manhã que a ficha caiu e alguém puxou pela memória: “Pera lá! Alguém se lembra do sujeito de ontem, na janela?“ E de repente, o que parecia ser um sonho nebuloso na cabeça ressacada de cada um dos Confrades começou aos poucos a tomar forma e a fazer sentido. “Se você sonhou, eu sonhei também!”.
O rapaz em apuros certamente era um hóspede e estava enchendo a caveira, como nós. Em dado momento da madrugada, como nenhum bar restasse mais aberto em Brugge que o acolhesse, resolveu voltar para o hotel. Quando se deu conta que havia perdido — ou esquecido — o número secreto a ser digitado na fechadura eletrônica da recepção. Condenado à chuva e ao relento, desesperado, nenhuma alternativa lhe restou a não ser escalar a escada de incêndio do prédio e pedir clemência na primeira janela que encontrou — a nossa.
“Decôda” era, lógico, the code, o código, que o pobre desalojado desesperadamente nos perquiria, molhado e aboletado à janela. Mas isso a cerveja belga dentro dos nossos crânios só permitiu que deduzíssemos na tarde seguinte, já bem longe da adormecida e misteriosa Brugge…
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