por Alexandre Marcussi*
Construindo seu vocabulário sensorial
Julgar e descrever
Toda boa avaliação de cerveja precisa, necessariamente, partir de uma descrição rigorosa.
É bem verdade que qualquer avaliação terá um forte teor de subjetividade, por envolver julgamentos acerca do que nos agrada mais ou menos. Contudo, nem tudo numa avaliação pode ser meramente subjetivo. Algumas pessoas podem achar que um determinado vestido azul de bolinhas amarelas é feio; outros podem considerar o mesmo vestido estiloso e encantador – isso não muda em absoluto o fato de que se trata de um vestido azul de bolinhas amarelas. Qualquer julgamento precisa, em primeiro lugar, estar ancorado em uma identificação correta das características objetivas da coisa a ser julgada.Não podemos nos propor a dar uma opinião consistente sobre algo sem sabermos descrever isso de forma minimamente rigorosa.
Assim como vestidos, cervejas também possuem características objetivas e indiscutíveis. Dois degustadores podem divergir dramaticamente em suas opiniões sobre determinado rótulo, mas precisam pelo menos chegar a um consenso sobre suas características objetivas, aquilo que indiscutivelmente está lá, dentro do copo. Ocorre que não estamos tão acostumados a usar palavras para descrever experiências gustativas e olfativas. Falar em cores e em formas (“bolinhas amarelas”) é fácil, mas como descrever o cheiro de um ambiente? Ou de uma cerveja?
Calibrar o vocabulário
Se estamos usando palavras para traduzir experiências sensoriais, a primeira precaução a tomar é ter certeza de que estamos usando as mesmas palavras para falar das mesmas coisas. Se eu uso a palavra “moreno” para indicar a cor do cabelo de um amigo, mas a outra pessoa entende que estou falando da cor de sua pele, isso obviamente vai causar um conflito de compreensão, que pode inclusive fazer com que a outra pessoa não reconheça a imagem do meu moreno amigo.
Com as cervejas ocorre o mesmo. Quando falamos, por exemplo, que uma determinada cerveja tem gosto de limão, é preciso nos assegurarmos de que estamos nos referindo à mesma coisa que as outras pessoas sentiram quando usaram a palavra limão. Senão, teremos apenas uma frágil ilusão de entendimento. Afinal de contas, a experiência de comer um limão envolve vários componentes: a intensa acidez da fruta, os vários aromas presentes em um limão, até a sensação na boca. Estamos falando exatamente do quê? Isso é o que os degustadores profissionais e sommeliers chamam de “calibrar o vocabulário”, e é o princípio de uma descrição correta.
Afinal de contas, o que é uma descrição correta? É talvez a mais detalhada? Ou a mais sintética? Possivelmente a mais objetiva, ou a mais opinativa? Nenhuma dessas coisas. Uma descrição correta é, simplesmente, aquela que poderá ser corretamente compreendida pelas pessoas. Não importa seu grau de detalhamento ou o quanto ela é opinativa. Para que ela possa ser compreendida, é preciso que as mesmas palavras sejam usadas e entendidas no mesmo sentido. Este é, inclusive, um dos grandes objetivos de qualquer curso de formação de sommeliers. Alguns cursos têm sido intensa e injustamente criticados ultimamente no meio cervejeiro porque muitas pessoas não se dão conta de um fato crucial: um curso de sommelier não pretende automaticamente formar um degustador com ampla experiência e conhecimento, mas sim calibrar o vocabulário de um grupo de degustadores para capacitá-los a elaborarem descrições sensoriais corretas.
O lúpulo não é uma flor?
Um exemplo concreto nos ajudará a compreender melhor essa questão. Um dos termos clássicos usados na descrição sensorial de cervejas é “floral”. Contudo, como sabemos, existem zilhões de flores no mundo, com aromas incrivelmente diferentes. Ou você vai dizer que um lírio e uma violeta têm o mesmo cheiro? “Floral”, portanto, pode parecer um termo algo enigmático a princípio. Quando o curioso por cervejas descobre que o lúpulo usado na fabricação de cervejas é a “flor” (mais precisamente, o cone reprodutivo) de uma planta trepadeira (o Humulus lupulus), ele pode pensar que matou a charada: “Ah, então, se o lúpulo é uma flor, ‘floral’ é simplesmente o aroma do lúpulo! Certo?”
Errado. “Floral” é um termo usado para descrever um conjunto de aromas, entre os quais provavelmente o mais importante deriva uma substância denominada geraniol. O geraniol é um dos compostos aromáticos que podem estar contidos na lupulina (óleo aromático do lúpulo), mas também pode ser produzido pelo metabolismo das leveduras. Algumas variedades de lúpulo exibem uma forte presença de geraniol, enquanto outros não. Nem todo lúpulo, portanto, é floral: há lúpulos florais, herbais, cítricos, frutados, terrosos, condimentados… Assim como nem todo floral provém dos lúpulos. Se você simplesmente chamar de “floral” qualquer aroma de lúpulo, as pessoas que lerem sua avaliação provavelmente pensarão que você está falando do tal geraniol. Com isso, você terá falhado em comunicar adequadamente sua experiência.
Oriente sua degustação
Daí a importância de calibrar seu vocabulário sensorial: trata-se de uma garantia de que um conjunto de pessoas estará usando as mesmas palavras para descrever as mesmas coisas. Falar em “floral” torna-se algo tão objetivo quanto falar em “bolinhas amarelas” quando dois degustadores estão bem calibrados. Degustadores profissionais normalmente têm acesso a recursos poderosos para calibrar seu vocabulário, como amostras de aromas isolados que podem ser degustados em diferentes concentrações. O degustador comum não tem acesso a essas coisas: o melhor que ele pode fazer é procurar esses aromas “ao natural” – ou seja, nas próprias cervejas. Que tarefa desagradável, não é mesmo?
Mas como saber quais cervejas possuem que tipos de característica? Essa é uma pergunta que escuto com frequência de degustadores iniciantes. É difícil encontrar descrições e avaliações confiáveis: quando consultamos a descrição da mesma cerveja em diferentes blogs e rankings online, ficamos bestificados ao perceber imensas divergências de uma avaliação para a outra. Em qual devemos confiar?
Infelizmente, a internet ainda é um recurso pouco confiável nesse sentido. Poucos degustadores profissionais divulgam suas descrições online (até porque muitos estão diretamente envolvidos com uma ou mais cervejarias), e 99% do material que encontramos é incorreto. Mesmo quando estão todos parecendo concordar, isso nem sempre é garantia de uma descrição correta: muitas vezes, um grupo de degustadores amadores é influenciado por uma determinada avaliação e sai reproduzindo uma informação incorreta. Vide a imensa quantidade de registros de aroma de “café” que encontramos em degustações de Belgiandarkstrong ales, que tipicamente não exibem esse sabor. Então, em que devemos nos basear?
Descrições produzidas por produtores e bons sommeliers são um bom começo, mas estão longe de serem o ideal. Eu costumo indicar o caminho mais árduo, mas também o mais recompensador, ao meu ver: os guias de estilo.
Guias de estilos
Guias de estilo são documentos, normalmente elaborados para campeonatos cervejeiros, que compilam as características sensoriais dos mais importantes estilos de cerveja. Os dois mais usados no Brasil são os guias do BJCP e da Brewers Association. Em um guia de estilos, você pode ter a certeza de que o vocabulário sensorial está sendo empregado de uma forma correta – ou seja, de uma forma que toda a comunidade cervejeira poderá compreender. E isso ocorre por um motivo simples: porque esses guias normalmente são usados como referência por toda a comunidade cervejeira.
Num guia de estilos, você encontrará as características normalmente esperadas de vários tipos de cerveja. Aprenderá, por exemplo, que uma American pale ale normalmente exibe um aroma cítrico, típico de lúpulos norte-americanos. Assim que degustar uma American pale ale, portanto, poderá procurar esse aroma e chamá-lo de cítrico sem receio de estar usando a palavra num sentido não-convencional. Melhor que isso: uma vez que você consiga identificar o que é isso que os cervejeiros chamam de “lúpulo cítrico norte-americano”, poderá identificar o mesmo aroma mesmo em cervejas de estilos em que essa características não é tão marcante. Bingo: você dominou esse vocabulário sensorial!
Isso é um procedimento que pode ser bastante lento e demandar diversas degustações para dominar cada característica. Na prática, como otimizaro processo e acelerar seu aprendizado? O guia de estilos do BJCP, um dos mais usados no Brasil, traz uma lista de rótulos após a descrição de cada estilo. Trata-se de representantes típicos do estilo, os quais, portanto, apresentam a maior parte dos elementos elencados na descrição. Degustar esses rótulos comparando-os, ponto a ponto, com a descrição do estilo é uma das formas mais seguras de compreender o que se quer dizer com cada termo. A cada gole, procure as características descritas no texto. Tente, com algum esforço de imaginação, entender o que o redator quis dizer quando usou termos como “chocolate” ou “apimentado”. Degustar uma única cerveja do estilo já ajuda, mas, se você puder degustar mais exemplares, melhor ainda, pois terá uma noção mais aguda de quais são as características comuns ao estilo e quais são as particularidades de cada cerveja específica.
Cobertor de cavalo?
Alguns termos do vocabulário sensorial cervejeiro podem parecer bastante herméticos, a princípio. Quando lemos a descrição das lambics ou de cervejas com leveduras selvagens nos guias de estilo, deparamo-nos com a bizarra ocorrência de “aromas animais”, lembrando “cobertor de cavalo”. Ah, dá um tempo! Como diabos você, uma pessoa plenamente urbana, que não cuida de animais no estábulo, irá identificar esse aroma?
Por conta dessas dificuldades, é importante que, paralelamente ao processo de calibrar seu vocabulário de acordo com os termos mais usados, você também construa o seu próprio vocabulário sensorial, e saiba transitar de um para o outro. Encare o desafio do cobertor de cavalo: deguste algumas lambics, uma Orval, uma Flandersred ale, e tente identificar o que todas essas cervejas têm em comum. É o tal “cobertor de cavalo”, um aroma tipicamente produzido por leveduras do gênero Brettanomyces, que ocorrem nessas cervejas. Algumas pessoas chamam esse aroma de “animal”, outras de “couro”, outras ainda simplesmente de “Brett”.
Eu, quando comecei a degustar, na minha cabeça, associava esse aroma a sal de frutas, sei lá eu por que. Alguma particularidade da minha memória olfativa, decerto. Mas eu sabia que ninguém usava o termo “sal de frutas” e que, se eu quisesse ser compreendido, teria de adotar o vocabulário corrente. Portanto, a cada vez que sentia algo que me remetia a “sal de frutas”, eu sabia que o termo a usar para descrever esse aroma era “animal”, ou quem sabe “couro”.
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