por Gabriela Montandon e Paulo Patrus*
Entre as maiores culturas agrícolas mundiais está o cultivo do trigo: gramínea originária do sul da Ásia Ocidental, cujo plantio pode ser datado de 9.000 anos atrás. Atualmente é o produto de uma série de cruzamentos naturais entre espécies selvagens aparentadas, aliados aos modernos melhoramentos genéticos.
Em virtude do seu alto valor nutritivo e sua elevada capacidade de adaptação aos diversos ambientes, o trigo tornou-se um dos cereais mais difundidos entre quase a totalidade das civilizações. A altíssima dispersão e uso deste cereal são tão antigos quanto a história do homem – exímio consumidor, tanto para o próprio proveito quanto para manutenção de seus animais domesticados.
O que é o trigo?
O trigo é uma gramínea (família Poaceae) pertencente ao gênero Triticum, com cerca de trinta qualidades geneticamente diferenciadas, entre as quais três largamente cultivadas: T. turgidum durum, T. compactum e T. aestivum vulgaris. O grão de trigo, de tamanho e cores variadas, divide-se praticamente em duas partes: o pericarpo (ou “casca”) e a semente. A parte mais externa corresponde ao pericarpo, composta por seis distintas camadas celulares, extraídas na moagem do grão para extração da semente. A semente por sua vez é formada pelo endosperma (componente primordial da farinha do trigo) e o gérmen (que corresponde ao embrião). O pericarpo, cerca de 15% do peso do grão, contém uma pequena quantidade de proteínas, uma larga quantidade de vitaminas do complexo B, traços de minerais e fibras alimentares – comercializadas separadamente como farelo ou fibra de trigo. Na semente, o endosperma constitui 80% do peso do grão e a maior porcentagem deste peso corresponde a moléculas de amido, entretanto também apresenta um pequeno percentual de proteínas, ferro e vitaminas do complexo B.
Variadas especialidades do trigo e seus derivados são empregados para fins igualmente distintos. A maioria do trigo produzido é utilizada na fabricação de alimentos como pães, biscoitos, bolos e massas. Uma parcela menor destina-se à fabricação de bebidas fermentadas, onde grãos parcialmente germinados (malteados) fornecem elementos essenciais para a obtenção de fontes de fermentação – os açúcares simples, derivados do amido obtidos no processo de brassagem. Tanto histórica quanto atualmente, quase a totalidade das cervejas é fabricada preferencialmente da cevada malteada enquanto o trigo destina-se essencialmente a produção de pães. Em parte, isto se deve a questões históricas envolvidas na distribuição dos grãos para a população e também às peculiaridades da utilização do trigo na fabricação de cerveja.
Privilégio de poucos
Em algumas civilizações, as cervejas de trigo foram consideradas bebidas nobres, pois a utilização deste grão se restringia à fabricação de pão, enquanto a cevada, para cerveja – qualificando o uso do trigo na bebida como um privilégio de poucos. Outras questões se devem às divergências estruturais do grão do trigo e da cevada que, em muitos aspectos, tornam o uso da cevada mais apropriado para a fabricação cervejeira. O pericarpo, ou “casca” da cevada, é um componente essencial no processo de filtragem da cerveja e, devido ao fato de algumas qualidades de trigo possuir esta camada com menor resistência, a constituição deste elemento filtrante fica comprometida. Além disso, o trigo apresenta menor proporção de amido em comparação à cevada e, consequentemente, apresenta menor rendimento na produção cervejeira.
Tais motivos correspondem à razão pela qual praticamente não há produção de cerveja exclusivamente com trigo: normalmente são adicionadas porções de cevada à receita, para auxílio na filtragem durante o processo de produção, e para aumentar a concentração de carboidratos no mosto. O alto índice proteico do trigo marca também a turbidez, o corpo e a espuma da cerveja – fatores determinantes em muitos estilos, e que muitas vezes os tornam tão distintos e especiais.
E começa a história…
Os registros de utilização do trigo na cerveja são temporalmente esporádicos: aparecem e desaparecem ao longo do cotidiano histórico das diferentes civilizações. Na antiguidade, as qualidades de trigo utilizadas eram o tipo ‘emmer’ (Triticum dicoccum), ‘einkorn’ (Triticum monococcum) e o ‘spelt’ (Triticum spelta), que foram substancialmente importantes para a origem do trigo atual (Triticum aestivum). Estas variações possuíam cascas mais rígidas (semelhantes à cevada) e, portanto, eram mais utilizadas para a fabricação de cerveja.
Estudos em sítios arqueológicos por todo o Oriente Próximo apontam que o cultivo do trigo ‘emmer’ se deu primeiro do que a cevada. O plantio das formas com pouca casca, ideais para a produção de pães, datam de aproximadamente 8.000 anos atrás. Após o domínio desta especialidade, registros na Mesopotâmia indicam o plantio das outras variedades de casca rígida – o que pode sugerir que estas culturas não se destinavam à fabricação de pão, e sim para a produção de cerveja. A maioria dos estudos aponta que o trigo tipo ‘einkorn’, de casca persistente, era de fato a variedade mais empregada na produção cervejeira. Tanto esta qualidade, cultivada na Ásia Menor (atual Turquia) e disseminada por toda Europa, quanto o trigo tipo ‘emmer’, foram substancialmente substituídos por variedades de trigo com maior rendimento.
Por último, a utilização do trigo ‘spelt’ foi muito pouco evidente, provavelmente pelo fato de que esta espécie possuía menor tolerância em climas quentes. Tanto na civilização mesopotâmica quanto na egípcia, cuja alimentação baseava-se em pão e cerveja, se fazia o uso do trigo ‘emmer’ e cevada de duas variedades (duas e seis fileiras).
Salários pagos com cerveja
Mesmo que a maioria do trigo cultivado se destinasse à fabricação de pães, os egípcios possuíam diversos tipos de cervejas de trigo. A distinção entre os estilos de cervejas se dava pelo período de maturação a que a cerveja era submetida e pela proporção de trigo ‘emmer’ utilizada na fabricação. Outra característica da sociedade egípcia se dava pelo pagamento de “salários de cereais” (essencialmente cevada e trigo) para os trabalhadores de pedreiras e grandes projetos de construção. Dependendo da situação ou gratificação a ser dada pelos superiores, estes pagamentos poderiam ser feitos com pão e/ou cerveja, devido a sua maior valorização se comparado ao grão não manufaturado.
No continente europeu, diferentes povos e civilizações diversificaram na utilização de cereais, incluindo o trigo, na produção de cervejas. Na sociedade celta, além do uso do malte de cevada e trigo, em suas produções atípicas também eram acrescidas fontes adicionais de carboidratos (como o mel, frutas e seivas de árvores), além de outros adjuntos (ervas e especiarias). Como o trigo também era preferencialmente destinado à produção de pão, a disponibilidade do uso deste cereal para produção de cerveja era um privilégio e, assim, as cervejas de trigo tornaram-se iguarias.
Os consumidores de vinho e cerevisia – denominação da cerveja de trigo pelos celtas – eram apenas aqueles com poder ou influência política e social. O consumo de cerveja por pessoas comuns se limitava apenas ao consumo de korma, cerveja produzida exclusivamente com cevada – grão visto como “inferior” ao trigo. Há algo especulativo sobre a origem da visão inferiorizada da cevada, mas há indícios da influência dos povos romanos durante a miscigenação cultural com os celtas.
Durante as invasões e colonização romanas em território celta, o exército romano utilizava a cevada apenas para alimentação de cavalos. Tinham o costume de divisão de “cotas de trigo” para os soldados e, para aqueles que necessitavam de punição, o castigo era a redução ou suspensão das “cotas de trigo” e sua substituição para “cotas de cevada”. E assim, o trigo foi ganhando caráter mais nobre – quando utilizado em cervejas, tinha a capacidade de enobrecer a bebida!
Na próxima semana, leia aqui a segunda e última parte dessa história.
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*Gabriela Montandon e Paulo Patrus são biólogos, cervejeiros caseiros e integrantes do grupo NEC – Núcleo de Estudos da Cerveja, sediado em Belo Horizonte (MG).
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