O país da canetada

Censura

Projeto de lei quer banir da TV cenas de consumo de álcool e cigarro

Na semana passada, a revista Veja publicou, na coluna Radar do jornalista Lauro Jardim, uma notícia estarrecedora. Segundo a nota, apropriadamente intitulada “Projeto bizarro”, o deputado federal Wilson Filho (PMDB) quer fazer aprovar lei que proíba a televisão de exibir atrações em que apareçam cenas de pessoas fumando ou ingerindo bebidas alcoólicas.

Pausa para respirar.

O filme Casablanca, de 1942, ainda hoje é considerado uma das melhores produções da história do cinema, citado por nove entre dez cinéfilos como um dos cinco melhores filmes já rodados, obrigatório pra quem diz gostar da sétima arte. Praticamente todas as cenas são memoráveis, arrepiantes e antológicas.

Assistamos novamente a Casablanca sob o comando da lei do nobre deputado Wilson Filho, caso seja aprovada. O palco do filme é a casa noturna Rick´s Café Américain, no qual contracenam magistralmente Humphrey Bogart, Ingrid Bergman e grande elenco. Nas panorâmicas da casa noturna, tarjas são colocadas sobre os copos e rostos das pessoas bebendo e fumando por entre as mesas. O espectador fica sem entender nada, já que as tarjas ocupam praticamente todo o espaço da tela.

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O pianista Sam começa a tocar no piano a música-tema As Time Goes By sob o olhar lânguido de Ingrid, quando é sapecada uma nova tarja, dessa vez sobre a taça de champanhe da mocinha. Ao longo da exibição, mal se vê o rosto de Bogart, sempre coberto pelas misteriosas tarjas, já que, no original, aparece quase todo o tempo fumando. A clássica cena na qual a orquestra da casa executa La Marseillase, o hino francês, sob os olhares de ódio dos nazistas presentes, deve ser quase toda cortada, uma vez que em todos os takes se divisam se não cigarros e taças, a fumaça do ambiente. O memorável final, no qual Bogart sai caminhando ao lado do capitão Louis Renault também deve ser inteiramente cortado, pois Humphrey insiste em declarar sua amizade ao francês em meio a baforadas de cigarro. Sob a égide da nova lei brasileira, Casablanca não terá um final.

Alguém aí, desde que começou a ler esse artigo, pensou no termo CENSURA? Pois é de censura que estamos falando. O projeto de lei é realmente bizarro, a revelar o ranço autoritário, fascista e antidemocrático que ainda grassa entre os nossos governantes. E dessa vez o lobo da censura vem travestido de cordeiro do famigerado politicamente correto, como se todos nós, o povo brasileiro, fôssemos bebês de colo a não podermos ver cenas de sexo porque não entendemos o que significam. Como se a simples exibição de cigarro e álcool fosse “apologia” ao consumo dos mesmos. Como se fôssemos incapazes de pensar sozinhos, e o Estado tivesse a obrigação de pensar por nós. Se alguém também pensou na palavra totalitarismo, acertou.

Pois sejamos totalitaristas até a medula! Álcool e fumo não podem ser exibidos? Censuremos então as cenas de violência, contidas na integralidade dos filmes de ação. Todos censurados, de Tropa de Elite até os desenhos animados — alguns dos quais, aliás, muitas vezes contém mais cenas de violência do que qualquer filme de luta. Que o mesmo se aplique aos videogames, uma vez que essas invenções demoníacas criam levas de psicopatas e se sabe que quem joga Mortal Kombat é influenciável ao ponto de sair às ruas distribuindo pescoções.

Pernalonga

AIDS e herpes também são perigosos? Que se censurem as novelas ou, vá lá, pelo menos os beijos em novelas. Beijo na televisão, a partir de agora, só na bochecha, vedado até mesmo o selinho da Hebe.

Nem se fale em drogas. Outro filme clássico, Scarface, de 1983, seria banido do território brasileiro, eis que os personagens nadam em cocaína.

Aliás, proponho um exercício mental ao leitor: Quantos filmes, seriados, novelas e demais programas seriam censurados caso a brilhante lei do deputado peemedebista fosse aprovada? Dê as suas sugestões nos comentários deste artigo.

O projeto de lei se transformaria em mais uma anedota de Brasília não fosse um fator preocupante: Segundo a nota de Lauro Jardim, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidiu comprar a briga pela sua aprovação. Salve-se quem puder.

Não é de hoje que chamo esta terra de “o país da canetada”. No Brasil, tem-se a percepção de que tudo se resolverá assinando uma nova lei, em geral proibicionista. Esta não é diferente. Álcool e fumo são questões de saúde pública? Assina-se uma lei censurando que sejam vistos na televisão e pronto, o problema está resolvido. É claro que educar a população sobre os males do cigarro e estimular o consumo moderado e responsável de bebidas alcoólicas está fora de questão. Dá trabalho, dá preguiça.

É mais fácil canetar. Assina-se uma nova lei, proíbe-se mais um tanto, e fim de papo.