Sabe aquela velha alegoria que diz que cada um de nós possui um diabinho no ombro esquerdo, a nos soprar ideias diabólicas no ouvido? Pois todo degustador de cervejas também possui esse diabrete, que tem até nome. Trata-se do Diabinho da Cervochatia (entenda o que são os “cervochatos“). Esse demoninho já entendeu que você, hoje, prefere as cervejas especiais. Nessa condição, você se torna sua vítima ideal, já que, dentre outras cervochatias, o diabinho sempre deseja guerra eterna entre as “artesanais” e as “mainstream” — posto que é de guerras e desavenças que os demônios sobrevivem. Este autor também não tem o ombro esquerdo livre do Demônio da Cervochatia e, confesso, muitas vezes sucumbo aos seus insidiosos cochichos. Acontece que, nesse exato momento, o meu coisinha-ruim está dormindo, motivo pelo qual aproveito pra escrever esse texto. Peço silêncio, por favor, senão ele acorda.
No último final de semana passada recebi o convite para fazer uma sessão de autógrafos do meu livro “Cervejas, Brejas & Birras” na primeira edição da Oktoberfest de São Paulo. Pra quem ainda não sabe, diferente de Blumenau, na qual há a presença das cervejarias artesanais de Santa Catarina, a versão paulista é exclusivamente patrocinada pela gigante AmBev. Ou seja, ao menos por enquanto, nada de artesanais no pedaço. O meu Diabinho da Cervochatia, ao dar-se conta do convite, mandou os bons modos aos infernos e, ao invés de sussurrar como de hábito, passou a berrar a plenos pulmões no ouvido esquerdo deste escriba. “Absurdo, heresia, disparate!”, bradava ele, entre alegações de que eu estaria me tornando uma espécie de “traidor do movimento” ou algo que o valha. Deu um trabalhão danado pra convencê-lo de que se tratava de um compromisso puramente profissional. Tanto o capetinha me azucrinou que fui à festa armado com um caminhão de pedras nos bolsos, pronto a atirá-las contra o primeiro copo de Brahma que me fosse ofertado.
Surpresa
Cheguei ao Parque Anhembi, local da Oktoberfest SP, esperando ver outdooors brahmeiros e caminhões vermelhos na paisagem, os quais não se marterializaram. Ao entrar no pavilhão da festa, surpresa: A linha de cervejas especiais da AmBev também estava disponível, e ocupando o mesmo espaço da Brahma. Tendas enormes de Leffe, Hoegaarden, Franziskaner e os estilos diferentes da Bohemia tinham o mesmíssimo destaque, sem um sobrepujar o outro. O resultado é que se formavam filas em número de pessoas equivalente em todos os pontos de venda. Meu pequeno tinhoso morreu de vergonha no meu ombro esquerdo.
Sobre a festa em si, embora houvessem surgido reclamações sobre a música eletrônica (na Oktoberfest de Blumenau também tem, diga-se), durante quase todo o tempo a música era mesmo a alemã. Por sinal, todas as bandas vieram da cidade catarinense, como se a Oktoberfest blumenauense tivesse se mudado de mala e cuia pra São Paulo. E, de certa forma, foi mesmo isso que aconteceu. No palco, bandas como Cavalinho, Cruzeiro, Barril e a alemã Die Kirchdorfer revezavam-se com apresentações de danças folclóricas germânicas e concursos de chope em metro. A decoração de inspiração bávara estava realmente muito bonita, e o público era composto de bem-comportados oktoberfoliões e famílias inteiras. A organização foi impecável. A música eletrônica ficou reservada apenas para a madrugada, no que a festa terminava às 5 da manhã.
A AmBev aproveitou a ocasião para fazer uma première da nova cerveja Bohemia Imperial, da qual falo com mais detalhes oportunamente no Ranking. Durante todo o tempo que estive lá, pude presenciar um caminhão de “brahmeiros” experimentando pela primeira vez as cervejas especiais do grupo. A maioria voltava pra repetir a experiência.
Então, desafinando o coro dos descontentes, qual o saldo da primeira Oktoberfest paulistana?
A lição que fica
Dentre outras conclusões, sobra a constatação de que a tão decantada cultura cervejeira não pode ser propriedade exclusiva das marcas que gostamos, ou dos amigos que temos. Ela pode partir de todos os lados, desde que atinja seu objetivo final, que consiste em mostrar diversidade cervejeira a quem acha que só existe um estilo possível. No caso da festa da semana passada, a AmBev, quem diria, promoveu sim a cultura cervejeira, até prova em contrário.
Compartilho da visão de Marcelo Carneiro, cervejeiro da Colorado (SP). Pra ele, os mercados artesanais e “mainstream” são muito mais complementares do que concorrentes — embora o meu Diabinho da Cervochatia esperneie quando eu falo isso. Jamais as cervejas artesanais irão ameaçar o poderio financeiro dos grandes grupos cervejeiros. Sua mira é em grande escala e pequeno preço, diferentemente das artesanais. As propostas e concepções são diferentes. Sempre houve e sempre haverá público consumidor para ambas. No mundo todo é assim, e assim sempre será. E se o grande grupo resolver elaborar cervejas especiais ou importá-las, tanto melhor pra todos, eis que o mercado se agita (não houve relatos de microcervejarias ou importadoras fechadas por causa da importação, pela AmBev, de Leffe, Hoegaarden e Franziskaner, mesmo que em preços baixos). E, claro, ótimo pra nós, consumidores.
Conviver com ambos os mercados, cada um na sua especialidade, é um exercício de inteligência e amadurecimento. O principal concurso cervejeiro do planeta, a World Beer Cup, na qual participam centenas de produtores artesanais dos Estados Unidos e do mundo, é patrocinada pela ABInBev, e nenhum gramunhão cervochato de lá dá a mínima — muito pelo contrário, pois se não fosse esse patrocínio, o campeonato talvez não teria o gigantismo e a importância que tem hoje.
A Oktoberfest de Blumenau levou décadas pra inserir as cervejas artesanais em um dos seus pavilhões. Mesmo assim, a maioria da festa ainda é dominada pela patrocinadora-master AmBev, e ainda dessa forma os tinhosos cervochatos não costumam se importar. Se o mesmo vai acontecer em terras paulistanas, apenas o tempo dirá. De qualquer forma, um grande avanço seria se nós, consumidores de cervejas, especiais ou não, nos despíssemos dos nossos próprios preconceitos e puséssemos nossos Diabinhos Cervochatos pra dormir na maior parte do tempo.
Mas espere… Oktoberfest em novembro? (Até essa pergunta o meu Diabinho Cervochato fez, com esgar de desprezo). Não sei e pouco me importa a resposta. A “original” de Munique começa em setembro há décadas, e ninguém se importa. Festa boa continua sendo boa o ano todo.
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