A curiosidade insaciável de Mauricio Beltramelli pelos rótulos especiais rende um livro para iniciantes no assunto, que será lançado em breve.
Uma bebida viva, que acompanha o homem desde o início da civilização, que já salvou vidas, na Idade Média, saciando a sede no lugar da água contaminada e ainda hoje faz parte da história da humanidade. Com aromas e sabores peculiares, ela prova que tem classe e cabe bem em diferentes ocasiões: harmoniza-se com pratos, é degustada em ambientes requintados ou não, e seus preços podem ser mais em conta ou até tirar o fôlego. Não, não estamos falando do vinho, e sim sobre cervejas especiais ? aquelas produzidas de forma artesanal, com matérias-primas selecionadas e receitas guardadas a sete chaves pelos mestres-cervejeiros. Embora tenham chegado tímidas ao Brasil, em menos de uma década, despertaram a curiosidade dos brasileiros e se firmaram por aqui.
Hoje, esse mercado cresce seis vezes mais que o da indústria cervejeira de grande porte, motivado, sobretudo, pela melhoria da renda per capita nacional, que impulsionou mudanças nos hábitos de consumo. É nesse cenário que Mauricio Beltramelli (na foto acima), um advogado apaixonado por cervejas, encontrou uma nova profissão. Sócio-proprietário do site Brejas e também do Bar Brejas, em Campinas (SP), o mestre em estilos de cervejas e avaliação, pelo Siebel Institute of Technology, em Chicago (EUA), está finalizando um livro sobre o assunto para iniciantes.
Em um bate-papo descontraído, Mauricio fala sobre sua trajetória até se tornar um profissional de renome na área, avalia o cenário econômico desse mercado, conta como descobriu os rótulos especiais, os ônus e os bônus da carreira, além de histórias de boteco. Para quem está dando os primeiros passos no assunto, ele desmente mitos, ensina como escolher e apreciar uma boa cerveja, e defende a nobreza da bebida, mostrando que ela merece ser degustada com o mesmo respeito atribuído ao vinho, na França, e ao uísque, na Escócia.
Como surgiu sua paixão por cervejas?
Sou advogado há mais de duas décadas e tenho clientes fora do país. Há alguns anos, precisei intensificar minhas viagens para o exterior e passei a ter contato com as cervejas especiais que, naquela época, eram raras no Brasil. Daí, diferentemente de muitos que vão para a Europa e buscam as mesmas cervejas que tomam aqui, eu quis experimentar ao máximo as variedades disponíveis por lá e me apaixonei.
E como se interessou de forma profissional pelo assunto?
Em 2004, as cervejas especiais começaram a chegar timidamente ao mercado, principalmente, por meio das importadoras de vinhos. A partir daí, comecei, juntamente com alguns amigos, a experimentar a bebida com mais afinco. Fomos trocando experiências e anotando tudo em uma planilha. Com o tempo, o arquivo ficou muito grande e as pessoas começaram a pedir indicações. Foi quando surgiu a ideia do site Brejas. No início, em 2006, era apenas um espaço com a opção para que as pessoas baixassem o arquivo, com um botão para download no meio da página. O número de acessos nos surpreendeu, percebemos que era um assunto palpitante. Daí, aproveitamos a onda e começamos com os blogs. Foi nesse momento que o Brejas começou a decolar.
Qualquer brasileiro seria capaz de eleger sua profissão como a melhor do mundo, mas, com certeza, ela também tem seus inconvenientes como qualquer outro trabalho. Você poderia nos contar alguns?
O principal inconveniente é justamente esse (risos). A partir do momento em que me tornei um profissional, minha noitada acabou. Não posso mais me dar ao luxo de ficar bêbado em público. Estou em um bar e as pessoas estão me olhando, esperando que eu mostre que a cerveja é uma bebida nobre, para ser degustada e não para se embriagar. Esse relax acabou. Agora, só passo da conta quando estou em casa, bem escondidinho.
Quando foi a última vez que você se embriagou?
A verdade é que já não tomo um porre faz muito tempo, desde minha época de colegial. Só para você ter uma ideia, sou casado há 10 anos e minha mulher nunca me viu embriagado. Por incrível que pareça, hoje bebo muito menos que antes de me tornar profissional, mas também bebo muito melhor: menor quantidade e maior variedade e qualidade.
Qual o principal precursor da boa cerveja no mundo?
Com certeza, Michael Jackson. Não o cantor, mas o jornalista inglês. Foi ele que, lá por volta dos anos 1970, começou a classificar a bebida e lançou um guia sobre o assunto, no qual ele descreve e organiza os rótulos de acordo com seu tipo, cultura e tradição das regiões. Foi ele o responsável pela difusão da cultura cervejeira. A partir daí, surgiram outras literaturas sobre o assunto.
Para quem tem interesse em ler sobre o assunto, há muitos livros disponíveis nas livrarias?
No exterior sim, já no Brasil ainda há muito pouca opção. A Alemanha e os Estados Unidos, por exemplo, encaram a cerveja como alimento. Aqui no país é diferente, é somente bebida. Mas, além da tradução que citei, posso sugerir O Catecismo da Cerveja, de Conrad Seidl, e Larousse da Cerveja, do meu amigo Ronaldo Morado.
Você já pensou em escrever um livro?
Sim, inclusive estou finalizando. Até outubro, ele estará nas bancas, pela editora LeYa. Será um livro para iniciantes, pois o Brasil ainda está nessa fase. O livro traz a história da cerveja no Brasil e no mundo, as classificações e também muitas dicas de degustação e de lugares para visitar.
Qual escola cervejeira os produtores brasileiros têm seguido?
Na maioria dos casos, é a alemã. É de lá, por exemplo, a origem da cerveja Pilsen, a mais difundida não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Os produtores começam com ela e, com o tempo, passam para a americana, com mais lúpulo, e para a belga, mais alcoólica.
Há cerca de 200 anos, as cervejas eram fermentadas em barricas de madeira. Por volta dos anos 50, passaram para os tanques de inox. No que isso influenciou?
Não somente em barricas, mas também em azulejos, em tanques abertos, o que facilitava a contaminação por micro-organismos presentes no ar. Esse é o grande terror dos cervejeiros modernos: a contaminação. A vantagem da fermentação em inox é a maior replicabilidade. Ela permite uma uniformização dos sabores e aromas, além do controle dos aspectos indesejáveis que podem interferir na qualidade da bebida. Isso, claro, vai refletir no bolso. Desse modo, foi possível produzir uma cerveja mais barata e sem tanto apelo gastronômico, o que fez com que o consumidor comprasse mais. Muitos acreditam que as mais elaboradas afugentam os clientes. Estamos querendo provar que não é bem assim.
O Brasil produz alguma cerveja fermentada em barricas? O que você acha disso?
Até hoje muitos ingleses usam recipientes desse tipo e até produzem a céu aberto, para consumo no próprio local, mas no exterior a cultura cervejeira é muito forte, diferente daqui. No Brasil, não conheço nenhuma. Já produzimos algumas maturadas, de segunda fermentação, como a Eisenbahn Lust, da Cervejaria Sudbrack. Mas eu acho ótimo que isso aconteça, embora o consumidor ainda não esteja preparado. Quando uma cerveja é fermentada em barris de madeira, pressupõe-se que ela vai ter outros sabores, aos quais não estamos acostumados, como o de couro de animais, notas azedas e maior acidez. Quem não conhece, às vezes, pode achar que a bebida está estragada.
Que cerveja desse tipo você sugere?
Para quem quiser conferir o que estou falando, é possível encontrar no mercado a Ola Dubh, da cervejaria escocesa Harviestoun Brewery. Ela é envelhecida em barris onde houve maturação de uísque.
Antigamente, o produto padronizado era mais valorizado. Já hoje, a cultura está se invertendo e o artesanal ganhou mais status. A que se atribui esse fato?
O aumento da renda per capita do brasileiro e o acesso mais fácil à informação favorecem a busca mais intensa por produtos de qualidade. No meu site, por exemplo, o número de acessos dobra a cada ano. E é o conhecimento que desperta a curiosidade. Qualquer pessoa que sabe que há muitas variações daquela mesma cerveja que ela está tomando no bar, vai querer experimentar outras. O brasileiro está tendo a mesma experiência que eu tive na Europa.
Não há nenhuma norma ou lei que estabeleça regras para a classificação de cervejas especiais. Então, quais critérios você usa para definir o que é ou não uma bebida desse tipo?
Eu gosto de usar uma definição que ouvi de um professor americano, que diz que a cerveja especial é feita de acordo com a receita que o mestre cervejeiro inventou para ela. Já as outras são feitas de acordo com uma pesquisa de mercado. É como comparar um prato elaborado por um chef de cozinha com um fast-food.
Então como saber se uma cerveja vale, realmente, quanto custa? Qual a dica para escolher um rótulo especial?
É preciso se informar e ter um pouquinho de paixão pelo assunto. Não há outro jeito. A pessoa tem que pesquisar e ler muito. Os rótulos nem sempre são confiáveis e podem não corresponder à realidade. Afinal, ninguém vai dizer que o seu próprio produto é ruim. Estamos numa briga muito grande sobre a necessidade de ter um sommelier de cerveja nos estabelecimentos que comercializam esse tipo de bebida. Assim como o vinho, é necessário indicação.
O que é importante observar no rótulo?
O principal é o estilo e há 120 deles, como India Pale Ale e Weiss. Outra coisa importante é a fabricação. Ao contrário do vinho, na maioria das cervejas não há safra. Geralmente, quanto mais jovem for a bebida, melhor ela será. Mas há exceção, como no caso dos rótulos de guarda. Eles continuam fermentando dentro das garrafas e vão melhorando ao longo dos anos. Normalmente, são mais alcoólicos e estruturados.
Existe uma temperatura ideal para servir cerveja?
Uma só não, existem várias. Cada estilo de cerveja pede uma temperatura diferente. A Pilsen, por exemplo, deve ser servida mais gelada, a 4°C. Já as Ale pedem entre 15ºC e 20ºC. Outro cuidado importante é com o armazenamento. Se for guardar a bebida, é melhor que seja numa adega, sem exposição à luz. O abre e fecha da geladeira faz com que a temperatura varie e, consequentemente, provoca alteração no produto. Mas, na falta de adega, coloque o produto em uma geladeira que não seja aberta constantemente.
Confira amanhã neste Blog a segunda e última parte da entrevista com Mauricio Beltramelli.
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