O mito da cerveja má

Terminaram devorados nossos parentes do pleistoceno que indagaram-se sobre as intenções do Tigre de Sabre encontrado no caminho de volta a aldeia. Decidir rapidamente entre bom e mau foi uma habilidade essencial na evolução da humanidade. Tanto que o mundo foi separado dessa forma. Tudo fazia sentido e sobrevivíamos para deixar descendentes e assim dar continuidade da espécie. O efeito colateral deixado foi a incorrigível compulsão por separar tudo entre dois extremos opostos, qualificando tudo que se apresente de uma forma ou de outra.

O sujeito passou a vida bebendo da mesma cerveja. Em sua trajetória passou por alguns rótulos e por fim escolheu o seu. Inspirado pelo instinto ancestral, ele separou o mundo da cerveja entre boa – a dele – e má, as dos outros. Havia paz e equilíbrio. Alheio ao fato de que as boas e as más eram mais ou menos parecidas, ele seguiu feliz até esbarrar em outro tipo de cerveja. Então ele precisou decidir se continuaria pelo caminho de onde vinha ou se exploraria o universo de opções que se apresentava. Minha história e provavelmente a sua coincidem com a segunda alternativa, vamos falar mais dela.

A passagem de um estilo de cerveja e meia dúzia de rótulos para centenas de estilos e milhares de rótulos pode ser confusa. Dessa forma, recorremos ao instinto ancestral e implementamos a dualidade que nos permite ver as coisas de forma organizada: a cerveja que bebíamos era ruim, a que bebemos agora é boa. O neófito se informa, alarga seu conhecimento, experimenta. Acaba descobrindo como a cerveja é feita e acredita entender porque a cerveja que ele bebia antes – e a grande maioria do universo ainda bebe – seria ruim. Lei da Pureza, puro malte, lúpulo, lager e ale integram o novo vocabulário. E nesse ponto ocorrem uma profusão de equívocos envolvendo o ponto central deste artigo: afinal de contas, o que é cerveja boa?

Equívoco número 1: Reinheitsgebot, A Lei da Pureza.

Ela costuma ser invocada como garantida de qualidade. Para começar, a Reinheitsgebot define apenas uma escola específica, a alemã, enquanto temos ainda pelo menos outras duas escolas clássicas, a inglesa e a belga, sendo que esta última usa e abusa de adjuntos – inclusive açucar – para produzir algumas das melhores do mundo. Ou seja, existe cerveja boa que não é Reinheitsgebot. E vice-versa. Sim, vice-versa. A cerveja pode seguir rigorosamente a Lei da Pureza e ficar ruim devido a problemas no processo de fabricação, carregando consigo os famigerados off flavors.

Equívoco número 2: cerveja leve é medíocre, é água suja.

Temos mais de uma centena de estilos oficiais de cerveja, alguns deles especificam cervejas leves. Elas são, disparado, o tipo mais consumido do planeta. E não é por mero acaso: as pale lagers são cervejas refrescantes fáceis de gostar por serem leves e pouco amargas. E são dificilíssimas de serem feitas. Exatamente devido à leveza, o processo deve ser rigorosamente controlado pois qualquer concentração de off – flavor ficaria destacada. Isso efetivamente acontece com muitas cervejas comerciais e tem pouco a ver com os ingredientes usados ou mesmo estabilizantes e antioxidantes. Sobretudo, essas cervejas são feitas em volumes oceânicos em estabelecimentos dispersos e precisam manter suas características, uma proeza hercúlea. E ainda assim, existem exemplos de boas cervejas comerciais, leves e bem feitas.

Equívoco número 3: O milho e os famigerados cereais não maltados.

Virou moda entre os neófitos desdenhar cervejas comerciais porque seriam supostamente feitas de cereais não maltados (mesmo por gente que sequer tem idéia do que seja malte), marcadamente milho. Coitado do milho. Jack Daniels é feito de milho e é um bourbon de sucesso. Muita coisa boa é feita de milho. Cerveja não, é verdade. Mas a César o que é de César. No passado o uso de gritz de milho e arroz (grão triturado e no caso do milho separada a parte oleaginosa) servia como fonte adicional de nutriente para a levedura. Dá tanto trabalho para processar que tem caído em desuso e muitas cervejas que declaram cereais não maltados em seu rótulo não utilizam nenhum, apenas deixaram a descrição pela comodidade de poder utilizá-los se e quando necessário. A bola da vez se chama high maltose e é um açucar idêntico ao encontrado no malte, mas extraído do xarope de milho e sem interferência direta no sabor da bebida. O famoso aroma de milho cozido das cervejas leves deve-se a um composto chamado de DMS que tem sua origem no malte. Sim, no malte. Você encontrou aroma de legumes cozidos, milho em sua cerveja? É um defeito e também uma prova de que ela foi feita com malte! Sobretudo, existe uma legislação nacional, a nossa lei da cerveja segundo a qual um máximo de 10% do peso do extrato primitivo pode ser de açucares adicionados, sendo os adjuntos permitidos até o máximo de 45% do total do extrato.

Mas afinal, o que faz uma boa cerveja?

Ingredientes de qualidade combinados em uma boa receita executada em um processo controlado. O componente final é você. A cerveja pra ser boa, tem agradar a você. Não interessa se agrada a todo o mundo e para você não tem graça. Do mesmo modo, é preciso respeitar a escolha alheia, evitando a armadilha da arrogância ao posicionar-se diante de pessoas com preferências diferentes, ainda mais se a intenção for beer-evangelizá-las.


Comments

11 responses to “O mito da cerveja má”

  1. Alexandre A. Marcussi Avatar
    Alexandre A. Marcussi

    Excelente artigo, Marcio, muito direto e esclarecedor. Parabéns, e que venham mais! A expansão do mercado de cervejas especiais no Brasil criou uma elaborada mitologia para explicar as diferenças entre as “novas” cervejas especiais e as “antigas”, mas há muito mito que circula por aí. Infelizmente, o resultado ultrapassa a simples desinformação para se tornar, às vezes, uma verdadeira cultura do desrespeito que precisamos combater se queremos que a cerveja continue sendo um símbolo de confraternização e não vire um símbolo da discriminação.

  2. Mauro Renzi Ferreira Avatar
    Mauro Renzi Ferreira

    Márcio, não sei se por querer ou sem querer, colocaram o seu artigo na sequência àquele do Marcussi, o que faz todo o sentido, pois você acaba de destruir o “mito” de que uma cerveja ruim é feita, APENAS, de ingredientes ruins.

    O que a torna má, de fato, é todo um processo que vai desde a escolha das matérias-primas e que chega à sua filosofia de trabalho e público-alvo. Nós não vemos uma abordagem inicial ruim na maioria das cervejarias artesanais, mas a continuidade dos trabalhos é desanimadora, para a maioria.

    Mauro Rnzi.

  3. Esse final casa bem demais com o “Minha “melhor cerveja do mundo” não veio de abadia, não veio de monastério. Mas veio num dia em que eu, já cansado, rumava num tapete mágico em direção ao paraíso!”, além de completar de modo singular o que já tinha sido colocado pelo Marcussi. Muito bom!

  4. Bento Avatar
    Bento

    Marcio, artigo muito bem escrito como sempre.
    Certamente, temos nossa preferência e tendemos a querer que os outros pensem como a gente. Isso é do ser humano. Mas precisamos respeitar não só o gosto dos outros, como o trabalho dos fabricantes. Mesmo que não goste do produto dele e pense que é de “má qualidade” não temos o direito de deprecia-lo.
    Abraço

  5. fabiana arreguy Avatar
    fabiana arreguy

    Márcio,

    excelente artigo e mais que isso, posicionamento corretíssimo o seu. Tenho horror a qualquer tipo de patrulha e essa classificação leviana do que seja cerveja boa e má é exatamente uma espécie de patrulha, nunca saudável para qualquer movimento social. Viva a cerveja que ” me” agrada, ” te” agrada, ” nos” agrada!

  6. Mauricio (BREJAS) Avatar
    Mauricio (BREJAS)

    Márcio matou a pau!
    Sempre digo que, para beer-evangelizar, não podemos de forma nenhuma ANTAGONIZAR, demonizar as cervejas das quais não gostamos tanto por um ou outro motivo.
    Com a difusão da cultura cervejeira — e é por isso que todos nós estamos aqui — cada vez mais pessoas vão, por elas próprias, separando joios e trigos — ou as cervejas bem-feitas das malfeitas. O que falta é INFORMAÇÃO, e pra isso trabalhamos.
    Concluindo, achei muito bem colocada a questão da Reinheitsgebot, outro mito que flutua na cabeça de quem gosta de cerveja. Há algum tempo escrevi um artigo aqui no Blog após uma pesquisa que fiz constatando que a Lei de Pureza não está mais valendo na Alemanha, sendo usada hoje apenas por tradição e um certo apelo marketeiro:
    http://www.brejas.com.br/blog/10-06-2009/lei-pureza-ainda-esta-valendo-2175/
    É isso aí. Parabéns pelo texto e um abraço!

  7. Gabriela Montandon Avatar
    Gabriela Montandon

    Muito bom Márcio!
    Acrescentaria ao fator da dicotomização das coisas entre bem ou mal, ao fato de que, ao que me parece, a classificação leviana da cerveja popular como ruim, dá ‘status’ ao proferidor, uma espécie de “soberanização”, característica que de alguma forma pode elevá-lo para uma parcela da sociedade. Doce ilusão, doce simplificação e distorção de uma realidade…

  8. Marcio Avatar
    Marcio

    Agradeço a todos o carinho, ainda vindo de velhos companheiros de copo e colegas de ACervA e Brejas. E recomendo a todos a leitura do artigo que o Mauricio mencionou: obrigatório!
    Forte abraço a todos!!

  9. Pablo Azeredo Avatar
    Pablo Azeredo

    Ótimo texto, Márcio!

  10. Jose Augusto Avatar
    Jose Augusto

    Marcio,

    texto perfeito! Que nós degustadores e apreciadores de boas cervejas jamais deixemos a arrogancia se sobressair. Educação cervejeiro é antes de mais nada informação e conhecimento. As boas cervejas falam por si, e cabe a cada um escolher a que mais agrada.

  11. Muito bacana o texto!Escrevi um post abordando o mesmo tema, que tem muito o que falar!

    http://gourmet.updateordie.com/cerveja/2010/04/lei-da-pureza-mocinha-ou-vila/

    Um Abraco!

    Alexandre

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