O texto abaixo é de Leonardo Sewald, cervejeiro formado pelo Siebel Institute of Technology e membro da Brewers Association e Master Brewers Association of Americas. O usuário do BREJAS Também é homebrewer e membro fundador da ACerva Gaúcha Ele fez uma senhora viagem cervejeira aos Estados Unidos conhecendo cervejarias e brewpubs lendários da Nova Escola Cervejeira Americana, e compartilha essa trip com os nossos leitores, com emoção e sobretudo informação cervejeira da boa! As fotos e notas do autor estão no final do artigo.
Aperte os cintos e viaje com o Leonardo, sem moderação!
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Quando se fala em cerveja, a maioria das pessoas faz uma associação direta com o povo alemão, com quem a cultura cervejeira anda de mãos dadas por séculos. Os “iniciados” na cultura de cervejas artesanais ainda lembram que não é apenas na Alemanha onde se fazem boas cervejas: ainda temos a escola tcheca, com a mundialmente famosa Pilsner; a inglesa, com a sua forte tradição das ales e cervejas escuras; e a belga, famosa pelas fortes cervejas trapistas, fabricadas em monastérios. Todos esses centros de atividade cervejeira possuem características que os tornam únicos, mas podemos dizer pelo menos duas coisas que todos têm em comum. Primeiro, o óbvio: todos estão na Europa (essa eu tenho certeza de que todos sabiam!); segundo, o não tão obvio assim: todas essas escolas cervejeiras possuem séculos de tradição na arte de fazer boas cervejas, lentamente aprimorando seus processos de produção para manter a consistência de seus produtos, que são de altíssima qualidade.
Mas o que dizer dos Estados Unidos? O país da famosa king of beers (Budweiser, hoje de propriedade do grupo belgo-brasileiro AB-Inbev) até cerca de 40 anos atrás era totalmente dominado por três grandes fabricantes: Anheuser-Busch (Budweiser), Miller e Coors (hoje unidas). Hoje o país possui 1558 fabricantes de cervejas artesanais, os craft brewers, cuja produção ultrapassa os 10 milhões de hectolitros, detendo uma fatia de cerca de 5% do mercado cervejeiro americano (1). Se os números não impressionam, vamos às cervejas…
Os Estados Unidos uniram o que há de melhor em termos de conhecimento técnico cervejeiro com um caráter de inovação que só é visto lá. Cervejas exóticas, feitas com frutas, verduras, com doses massivas de determinados ingredientes (na maior parte das vezes, o lúpulo, o ingrediente predileto dos americanos, do qual vamos falar a respeito mais adiante) transformam as cervejas americanas em experiências que transcendem quaisquer paradigmas de sabor previamente formados. Até cerveja com bacon existe nos Estados Unidos! Aliado a um produto de alto padrão de qualidade está uma curiosa irreverência, um verdadeiro entusiasmo em disseminar a cultura cervejeira por todos os cantos. Desde as session beers, com ínfimos 3% ABV (alcohol by volume, nossa medida de teor alcoólico), até as extreme IPAs com 18% ABV e as Utopias de 27% ABV, os Estados Unidos tem muito a oferecer em termos de cerveja.
Além disso, os Estados Unidos também são a Meca dos homebrewers, o que, sendo eu também um homebrewer, torna a viagem uma experiência ainda mais interessante. O hábito de fazer a própria cerveja em casa está fortemente enraizado na cultura americana. Alguns historiadores afirmam que a viagem dos peregrinos de 1620, aqueles que celebraram o primeiro Dia de Ação de Graças no que viria a ser os Estados Unidos, foi marcada pelo hábito de homebrewing: a viagem, que tinha como destino a Virginia, teve uma parada “de emergência” exatamente sobre uma grande pedra, a rocha de Plymouth, pois tinha acabado a cerveja e eles precisavam fazer mais. Além disso, grandes figuras da história americana, tais como Thomas Jefferson e George Washington, eram homebrewers! Avançando para os dias de hoje, vemos que o americano preza muito pela cultura do “do it yourself” (faça você mesmo) em muitos aspectos de suas vidas, inclusive no que diz respeito à fabricação de cerveja. Os homebrewers americanos não são apenas cervejeiros caseiros, são ativistas da boa qualidade, que valorizam e fazem questão de divulgar as boas cervejas produzidas em sua região como se fossem produzidas por eles mesmos. Assim nasceu o movimento Support your Local Brewery, que deu força e impulsionou o crescimento da indústria de craft brewers nos Estados Unidos.
Mas enfim, chega de história. No mês de novembro do ano passado, eu, juntamente com minha esposa Caroline Bender (que também é homebrewer e expert em harmonização. Sim, eu sou muito sortudo!), tivemos a oportunidade de realizar um tour cervejeiro pelo nordeste da terra do Tio Sam. Com exclusividade para o BREJAS, segue abaixo o nosso roteiro do que conhecer, assim como o que evitar, quando você for aos Estados Unidos e estiver com sede de boas cervejas…
Aviso importante: a leitura deste artigo pode provocar muita, mas muita sede. Logo, abra uma cerveja antes de começar a leitura. Artesanal ou a sua, obviamente.
Chicago
Chicago, cidade mundialmente conhecida por ser um importante centro financeiro, é a terceira maior cidade americana. Na condição de cidade grande, recebe produtos de todos os cantos do país, sendo também fácil encontrar boas cervejas em qualquer supermercado ou grocery store. Mas como você certamente não está lendo esta matéria em busca de dicas de bons supermercados pra se comprar alface em Chicago, vamos ao que interessa…
A Wind City oferece excelentes opções em termos bares, restaurantes e demais casas especializadas em cerveja. A cidade possui diversos brewpubs (2), bares/restaurantes que fabricam sua própria cerveja no local. Os brewpubs americanos são tão famosos que alguns deles se transformaram em franquias, chegando a espalhar-se por todo o país. Os brewpubs se diferenciam pelos estilos de cerveja fabricados, sendo que a grande maioria fabrica tanto os seasonal styles (sazonais, de produção limitada) quanto os year-round styles (de fabricação permanente).
Um exemplo de brewpub dessa categoria é a microcervejaria Rock Bottom (1 West Grand Ave.), muito bem localizada logo na saída da red line do metrô na esquina entre a State e Grand avenues, região do centro da cidade. O local possui um cardápio de sanduíches, pizzas e petiscos de frutos do mar, todos devidamente apimentados (3) e com sugestões de harmonização com as cervejas da casa. O cardápio de cervejas possui cerca de seis rótulos, mas é constantemente atualizado à medida que novas receitas são elaboradas. Dentre as year-round beers da Rock Bottom, a que mais me chamou a atenção foi uma american wheat beer que, para minha sorte, tinha ficado pronta para servir a apenas algumas horas antes da nossa chegada no bar. Para aqueles que quiserem ficar pertinho do brewpub, a região disponibiliza uma variedade de hotéis nas proximidades.
Já a Goose Island, brewpub iniciado em 1988 pelo cervejeiro John Hall, após retornar de um ciclo de viagens pela Europa, possui uma variedade bem maior de cervejas. Normalmente o cardápio possui em média 16 cervejas diferentes. Quer mais? Ainda há os thursday beer showcases, sessões de apresentação de determinada cerveja que acontecem toda quinta-feira: uma cerveja fabricada no bar é escolhida para ser apresentada ao público. Enquanto os cervejeiros responsáveis falam sobre a elaboração da receita, os garçons servem “pequenas” doses (copos de 200ml) gratuitamente para os clientes do bar, durante toda a noite. Após o discurso bastante técnico dos cervejeiros, o gerente (e às vezes, o proprietário) rouba o microfone e saúda a todos com um sonoro “Cheers to the Goose!”, repetido em coro por todos os clientes do bar.
Foi na Goose Island onde passei pela minha primeira experiência lupulada em território americano, provando a Goose Island Harvest Ale, uma Extra Special Bitter feita com lúpulos frescos (4), com um sabor cítrico com um aroma floral intenso que mudou meus conceitos no que diz respeito ao amargor nas cervejas. O frescor dos aromas e sabores é tão grande que a cerveja, apesar de ter 72 IBU’s (5), dá uma sensação de refrescância muito grande. Para efeito de comparação, a nossa Pilsen brasileira possui um IBU de 5.
Na Goose Island também percebi pela primeira vez a paixão dos americanos por cerveja, mas não apenas por bebe-la: não foram poucas as vezes onde, sentado ao bar, me via literalmente cercado de pessoas debatendo sobre cerveja, sua fabricação, ingredientes, processos, harmonizações, etc. É como se, a qualquer lugar que fossemos sempre encontraríamos algum beer geek para conversar.
Os bares na cidade do festival Lollapalooza também são um show a parte. O grande destaque fica pelo The Map Room, uma pequena taverna localizada aos arredores do bairro Bucktown. O bar é o único em Chicago a possuir uma licença para operar como taverna, podendo assim apenas servir bebidas. Logo, vá alimentado. A seleção de cervejas é tão grande que é impossível alguém sair de lá e dizer que provou tudo. Não há garçons e o atendimento e feito diretamente no balcão do bar e não se esqueça de levar dinheiro, pois a taverna não aceita cartões.
Outro bar interessante, esse um pouco mais afastado do centro, é o Delilah’s (2771 N. Lincoln Ave.). Esse bar mostra que a cerveja artesanal e música dão um casamento de sucesso. Famoso pelos freqüentadores de bandas de punk rock de Chicago, o bar é eclético: punk rock às segundas e sextas, DJs convidados às terças, country music nas quartas-feiras, clássicos americanos no fim-de-semana. Tudo isso com cerca de 100 cervejas a disposição. De formato similar ao The Map Room, o bar também não tem garçons (mas aceitam cartões e servem comida). Boa pedida para aqueles que curtem rock n’roll e cerveja.
Manhattan (Nova York)
A capital do mundo não pára para ninguém, mas qualquer um pode parar por ali e tomar uma boa cerveja. A cidade é recheada de beer bars e liquor stores especializadas em vender cervejas artesanais. Como bons exemplos de bares, temos o Blind Tiger (281 Bleeker St.), pequeno e aconchegante bar já premiado pelo NY Times como o melhor bar de New York, situado na West Village de Manhattan. Além da enorme seleção de cervejas, com cerca de trinta opções on tap (na torneira, ou seja, de barril) e três on cask (6), sem contar as garrafas, aqui foi onde descobrimos algumas harmonizações interessantes, tais como a Smutty Nose Winter Ale, uma cerveja escura com trigo, de corpo médio e moderadamente doce, mas com final amargo, unida a queijo de cabra, ou ainda o par descoberto pela Carol: uma harmonização de cair o queixo entre uma cerveja Allagash White, uma american White beer com traços condimentados, e uma sopa de tomate com creme de leite, acentuando o caráter apimentado da sopa. O Blind Tiger é uma excelente opção para ir a dois ou então em pequenos grupos, e fica ainda mais especial no inverno, onde uma enorme lareira de centro fica acesa o tempo todo.
O DBA (41 1st St.), famoso bar de craft breweries em NY, com dezenas de torneiras servindo beers on tap, serve petiscos diversos e queijos, que em determinados dias da semana são servidos gratuitamente.
Se você atravessar a ponte para o Brooklyn, também estará bem servido. O Spuyten Duyvil (359 Metropolitan Ave.) é um pequeno bar de nome complicado situado no Brooklyn e que possui uma seleção composta na sua maioria por raridades, tais como algumas lambics e trapistas belgas e algumas cervejas sazonais americanas. O Brooklyn também e o território da Brooklyn Brewery, cujas cervejas são assinadas pelo renomado mestre-cervejeiro Garrett Oliver, famoso por suas incursões no universo da harmonização de cervejas. A cervejaria fundada nos anos 80 pelos amigos Steve Hindy e Tom Potter, que largaram seus empregos para fazer renascer a indústria cervejeira de New York, que, no passado, era repleta de cervejarias, na sua maioria criada por imigrantes irlandeses e alemães. Era tão forte a ligação entre New York e a cerveja que, no século 17, devido ao intenso trafego de barris pela região, a rua principal do sul da ilha de Manhattan se chamava Brouwers Straet, ou Brewers Street (a rua dos cervejeiros). Vagonetas e carrinhos de mão, trazendo barris pra lá e pra cá o tempo todo, frequentemente ficavam presos no lamaçal que se formava na rua quando chovia. Por esse e outros problemas de saúde pública (a lama entrava pelas frestas nas portas das casas), a vizinhança, em um esforço conjunto, pavimentou a Brewers Street, que passou a se chamar Stone Street, a primeira via pavimentada dos Estados Unidos. Tudo por causa da cerveja!
Milton/Rehoboth Beach, Delaware
A forma mais prática de chegar a Delaware é de trem, visto que Delaware não possui aeroportos de grande porte. A dica é alugar um carro assim que chegar em Delaware. Deslocar-se pelo território americano de avião é muito estressante e de trem não é tão rápido quanto no continente europeu. Para deslocar-se até algumas cidades menores, o carro acaba sendo o meio de transporte mais eficaz e com melhor custo benefício.
A grande atração cervejeira do estado de Delaware é a cervejaria/brewpub Dogfish Head. Fundada em meados dos anos 90, a cervejaria, bem como seu proprietário, Sam Calagione, são ícones de inovação do mercado cervejeiro norte-americano com cervejas exóticas. Quando Sam abriu seu brewpub em 1995, se deu conta de que o estado de Delaware não permitia tal tipo de negócio e não expediria a licença para o brewpub. Mesmo assim, Sam foi “importunar” pessoalmente o gabinete político do estado. Em um esforço de meses de trabalho, conseguiu a primeira licença de brewpub no estado de Delaware. Isso foi tão importante que serviu até como slogan da Dogfish Head durante um tempo: the first brewery in the first state (Delaware foi o primeiro estado americano a assinar a constituição em 1787).
Também foi da mente de Sam que surgiram, dentre outras maravilhas, as cervejas de lupulagem contínua, que deu origem às hoje famosas 60-minute, 90-minute e 120-minute IPA’s, as cervejas mais vendidas da Dogfish. O segredo da lupulagem contínua está em uma simples mudança de conceito, que requer uma breve explicação técnica sobre o processo de fabricação (a propósito, como vai aquela cerveja que você abriu lá no início do artigo? Se já acabou, aproveite o assunto e abra outra): normalmente, no processo de fabricação, o lúpulo, ingrediente essencial de amargor na cerveja, é adicionado em períodos específicos durante a fervura do mosto (7), processo utilizado como forma a extrair as propriedades de amargor, sabor e aroma do mesmo. Por exemplo, vamos supor que eu e você estamos fazendo uma cerveja e decidimos que vamos ferver o mosto durante uma hora, escolha mais comum feita pelos cervejeiros. Podemos dividir a adição do lúpulo em três estágios distintos: no início da fervura (ou aos 60 minutos do fim), aos 15 minutos do fim e aos 5 minutos do fim da fervura, dessa forma tendo um bom aproveitamento das características de amargor, sabor e aroma que o lúpulo pode fornecer.
Pois bem, mas o que isso tem a ver com a Dogfish Head? A lupulagem contínua quebra esse conceito fazendo uma adição continua de lúpulo, durante toda a fervura. Os números nos nomes das cervejas da Dogfish (60 minute, 90 minute e 120 minute) indicam não só o tempo em que o mosto é fervido, mas também se referem ao tempo em que a cerveja ficará recebendo doses de lúpulo. Para isso, Sam inventou um “sofisticado” mecanismo (8), que recebeu o nome de Sir Hops Alot (em uma alusão ao cavaleiro Lancelot da lenda do Rei Artur). Com esse processo, a Dogfish Head criou uma receita de cerveja que explora uma complexa gama de sabores e aromas provenientes do lúpulo que ainda não havia sido explorada comercialmente, tornando a experiência um sucesso de vendas.
O brewpub da Dogfish Head está localizado na cidade de Rehoboth Beach (320 Rehoboth Avenue) e foi onde Sam começou suas incursões pelo mundo da cerveja. Além do brewpub, a Dogfish Head possui uma cervejaria instalada da cidade de Milton (6 Cannery Village Center). O segredo é ficar em um charmoso hotel chamado The Inn at Canal Square, situado em Lewes, cidade que fica, convenientemente, no meio do caminho entre o brewpub e a cervejaria. Além de a pequena Lewes ser muito aconchegante, o hotel ainda oferece um programa de fim-de-semana elaborado em conjunto com a Dogfish Head chamado 360 degree Dogfish experience, onde, durante dois dias, o hóspede fica literalmente cercado pelo “Dogfish Way”: desde o quarto do hotel, a Brewmaster’s room, onde tudo gira em função da Dogfish, desde o famoso logo do tubarão fixado na parede até as cervejas no frigobar, passando por camisetas da cervejaria que o hóspede recebe de brinde, literatura sobre cerveja no quarto, quadros contendo depoimentos assinados por Michael Jackson (não o cantor, o beer hunter!) e mais uma série de detalhes que cativam o hóspede. Incluso no pacote também está o translado de barco (sim, de barco) do hotel até o brewpub.
Fica difícil destacar apenas uma cerveja do portfólio da Dogfish. A 120 minute IPA é uma IPA com 18% ABV, violentos 80 IBUs e incrivelmente balanceada. O início adocicado dá lugar aos sabores provenientes do lúpulo e do álcool, com um final marcante. Já a Palo Santo Marron, uma Brown ale não filtrada, é fermentada e maturada em tonéis de madeira similares aos encontrados nas vinícolas, com a diferença de que os da Dogfish, além de serem utilizados para a fabricação de cerveja, são feitos de Pau Santo, uma espécie de árvore comum no Paraguai e em partes do centro-oeste brasileiro, cuja madeira é uma das mais densas existentes.
Foi na cervejaria da Dogfish Head em Milton que percebemos a total irreverência do microcervejeiro norte-americano. O lema off-centered ales for off-centered people (cervejas “não usuais” para pessoas “não usuais”) é levado à risca pelos funcionários, que, apesar de tratarem a cerveja com muito profissionalismo, não se levam nem um pouco à serio. Isso acaba tornando a experiência muito divertida, afinal de contas, o produto da empresa é o elixir da felicidade, não é mesmo? Não há motivos pra ficar carrancudo. Tomamos algumas (na verdade, várias) cervejas com os dois funcionários da Dogfish que nos atenderam durante o tour, recebemos um presente do Sam Calagione e um cartão da cervejaria. Assim fica difícil ir embora!
Boston
O clima universitário de Boston é mais do que convidativo para uma cerveja. Em Boston, inclusive, estão localizados os dois sports bars mais populares do país rankeados pela ESPN (curiosamente um em frente ao outro), o Four’s Boston Restaurant e o Cask n’Flagon. Os americanos são tão ligados em esportes que até no banheiro masculino existem pequenas TV’s individuais em cada mictório para que o cliente não perca nenhum momento do jogo, nem quando estiver com a bexiga cheia!
Enfim, a não ser que você seja ligado em esportes americanos e goste muito de Budweiser, esqueça esses bares e vá direto ao Boston Beer Works (110 Canal St.), um brewpub nas proximidades do Four’s. O local tem clima de festa, é grande e bastante movimentado, com direito a fila de espera, mas vale à pena. A comida é excelente e a seleção de cervejas é muito boa, com um destaque para a cerveja Slash N’ Burn Double IPA, uma cask-conditioned ale clara, com aromas cítricos e de especiarias, corpo intenso e final amargo e, ainda assim, com um alto drinkability.
A filosofia americana do “the bigger, the better” também se aplica às cervejas: o bar Sunset Grill (130 Brighton Ave.) possui nada mais nada menos do que 116 cervejas on tap! Uma infinidade de cervejas, tudo ao som de muito rock n’ roll. É indescritível a emoção de tomar uma boa cerveja ao som de Pearl Jam e Alice in Chains e ver que todos que estão ali também estão curtindo.
A cidade do MIT também é a terra natal da Boston Beer Company, também conhecida como Samuel Adams, a maior microcervejaria americana. O nome homenageia o ativista político do período colonial americano, que também trabalhou como cervejeiro durante o início de sua carreira. As cervejas da Sam Adams não são mais fabricadas em Boston, mas o proprietário, Jim Koch, resolveu manter a planta de fabricação de Boston como uma homenagem ao ativista e a utiliza para criar receitas-piloto para teste com o público. Do portfólio de 21 cervejas da Samuel Adams, o destaque fica com as Utopias, uma das cervejas mais fortes do mundo, com 27% ABV. Apesar de ser bastante conhecida, a cerveja é caríssima: uma garrafa não sai por menos de U$ 150.
A visita à cervejaria é quase que obrigatória: funcionários sempre de bom humor, degustação em mesas de stammtisch, as tradicionais mesas compridas comumente vistas nas Oktoberfests. Aliás, falando em Oktoberfest, que tal esse fato: a Samuel Adams Octoberfest Lager ganhou, em 2008, medalha de ouro em um concurso exclusivo de cervejas do tipo Oktoberfest. O detalhe: o concurso foi feito na Bavária!
Middlebury, Vermont
A pequena e bela Middlebury, situada no oeste do estado de Vermont, conta um pedaço da história americana. A cidade é uma das 131 cidades originais concedidas durante o New Hampshire Grant, um conjunto de concessões de terra feito no século 18 pelo governador de New Hampshire, que deu origem ao estado de Vermont. Curiosamente, quando chegamos ao hotel em Middlebury, descobrimos que uma comitiva brasileira tinha acabado de sair de lá: é que havia se encerrado há poucos dias uma conferência anual da Master Brewer Association of Americas (Associação de Mestres Cervejeiros das Américas) e o local escolhido no ano de 2009 foi Middlebury!
Middlebury é a sede da Otter Creek Brewing, cervejaria batizada com o nome das cascatas do rio que atravessa a cidade. A cervejaria Otter Creek é famosa por produzir as cervejas orgânicas da Wolaver, marca certificada de produtos orgânicos. Necessário dizer que o estado de Vermont tem uma tradição agrícola muito forte, sendo que é incentivado o consumo e a fabricação de produtos orgânicos na região como forma de garantir uma sustentabilidade econômica.
Voltando às cervejas… Eu e a Carol encontramos duas grandes favoritas aqui: uma foi a Otter Creek Alta Gracia Coffee Porter, uma cerveja escura feita com baunilha e grãos de café, possuindo, obviamente, um sabor marcante de café e um misto de aromas de baunilha e chocolate. Boa pedida para os amantes de café e cerveja como eu. Já a Carol, que pregava o uso da Reinheitsgebot no fabrico das suas cervejas, quebrou paradigmas ao encontrar na Otter Creek Winter Ale Raspberry Brown uma de suas cervejas prediletas. Uma cerveja ácida, levemente adstringente, mas com alto drinkability, feita com framboesas.
Portland, Maine
A velha Portland é sinônimo de acomodações baratas, belas paisagens marítimas e lagostas absurdamente baratas. Além disso, a cidade está construindo uma boa reputação no ramo de craft brewing. Talvez não seja tão famosa quanto sua irmã mais nova (Portland, OR), mas certamente tem muito a oferecer em termos de cerveja.
A mais conhecida das craft breweries de Portland é a Allagash, uma marca pioneira na fabricação de cervejas seguindo a escola belga, mas com uma assinatura americana. A visitação é uma boa pedida, pois com um pouco de sorte, você consegue ver os cervejeiros com a “mão no mosto” fabricando cerveja, pois a cervejaria funciona quase que constantemente.
A cidade também possui alguns charmosos brewpubs, tais como a Sebago Brewing e o Gritty McDuff’s. Mas é no bar Novare Res onde descobrimos o melhor bar de nossa viagem, senão um dos melhores bares que já conheci.
Localizado em um beco no centro da cidade, não teríamos encontrado o bar se não fosse por um quadro exposto na rua com uma seta desenhada a giz com a inscrição “Bier this way”. O bar tem um clima de cave, com uma seleção de cervejas de dar inveja: 25 cervejas on tap, 300 rótulos sempre disponíveis e 2 bombas para servir cask ales. O longo balcão do bar é convidativo e os atendentes gostam de uma boa conversa.
Chegamos ao fim do nosso tour. Com esse breve roteiro cervejeiro (ok, talvez não tão breve assim), é possível desfrutar de uma parte do que os Estados Unidos têm a oferecer em termos de cervejas. Sim, uma parte, pois não falamos do sudeste americano, das cervejarias californianas, de Portland, Oregon e as cervejas do noroeste… Mas isso é assunto pra outro artigo. Ok that’s it, Cheers!
Notas
(1) Dados da Brewers Association de 30 de Abril de 2010. Disponível em: http://www.brewersassociation.org/pages/business-tools/craft-brewing-statistics/number-of-breweries;
(2) Os Estados Unidos são a terra dos brewpubs. São 981, de acordo com a Brewers Association. Os brewpubs são um conceito antigo de comércio de cerveja, onde a mesma é vendida no próprio local onde é fabricada. Nos Estados Unidos, os brewpubs são, na sua maioria, modernos bares e restaurantes, mas que ainda valorizam o antigo conceito, fabricando a cerveja no local;
(3) Sim, você leu certo: os americanos são literalmente “viciados” em pimenta. Logo, muito cuidado quando você resolver pedir aquela porção de buffalo fiery chicken wings: tenha sempre uma cerveja por perto, ou uma porção de pepinos para anular o ardor da pimenta;
(4) O lúpulo, ingrediente responsável por fornecer as principais características de amargor da cerveja, normalmente passa por um processo de secagem e peletização após ser colhido. As harvest beers utilizam o lúpulo recém colhido, sem passar pelo processo de secagem, em um processo chamado pelos americanos de wet hopping. Também é permitido denominar de harvest ale uma cerveja cuja lupulagem foi feita com lúpulos que passaram por uma leve secagem para os casos onde o lúpulo utilizado viaja longas distâncias (caso da Sierra Nevada Harvest feita com lúpulos da Nova Zelândia). Isso torna as harvest ales cervejas sazonais, disponíveis apenas durante as épocas de colheita do lúpulo (Outono);
(5) Sigla de International Bitterness Units, ou unidades de amargor, parâmetro que mede a intensidade do amargor fornecida pelo lúpulo nas cervejas. É a medida mais popular de amargor utilizada no mercado cervejeiro. O cálculo do IBU é feito através de um procedimento chamado espectrometria de massa, procedimento químico que identifica os diferentes átomos presentes em uma substância (no caso, uma amostra de cerveja);
(6) As chamadas cask-conditioned ales são cervejas não pasteurizadas que passam por um processo de segunda fermentação (conditioning) e são servidas diretamente do barril, sem a adição de nitrogênio ou CO2 externo como agente de carbonatação. Também são conhecidas como Real Ales e são muito populares na Inglaterra através da organização CAMRA – Campaign for Real Ale.
(7) O lúpulo possui resinas chamadas ácidos-alfa, que são os compostos responsáveis por dar amargor às cervejas. O ácido-alfa é insolúvel em água, mas quando fervido, ele passa uma reação química chamada isomerização, que transforma a estrutura molecular do ácido-alfa, de forma que ele passa então a ser solúvel. Depois da isomerização, o ácido-alfa é denominado ácido-iso-alfa. O tempo de fervura, nesse sentido, determina a quantidade de ácido-alfa que será isomerizada, dessa forma fornecendo amargor para a cerveja. O tempo médio de fervura para se conseguir uma boa eficiência de extração de ácidos-iso-alfa é de 60 minutos, mas alguns cervejeiros costumam empregar fervuras de 90 e até 120 minutos para uma melhor eficiência de extração;
(8) Atualmente a Dogfish possui um equipamento proprietário para fazer a lupulagem contínua, mas no primeiro teste, Sam adaptou um tabuleiro elétrico de um popular brinquedo americano, o Coleco’s Electric Football Game, onde o tabuleiro vibrava. Daí em diante a idéia foi simples: encher o tabuleiro de pequenos furos e por pellets de lúpulo por cima, fixando o tabuleiro em cima da panela de fervura. O tabuleiro já foi inutilizado no primeiro uso, mas a cerveja-protótipo foi um sucesso!
Curiosidades
– Paixão pelo lúpulo: os Estados Unidos são o segundo maior produtor de lúpulo do planeta e o primeiro em área total de plantio. Também foi, durante muitos anos, famoso por fabricar cervejas cuja característica de amargor é muito leve e sutil, tais como a Budweiser. Tais fatos fizeram com que Ken Grossman, em 1980, criasse uma receita de cerveja carregada com altas quantidades de lúpulo. Assim nasceu a Sierra Nevada, uma das maiores microcervejarias americanas e a grande responsável por criar uma tendência de mercado: a de cervejas amargas. A partir daí, o público cervejeiro americano se lançou numa cruzada em busca de extreme beers, cervejas com sabores extremos, e adotou o lúpulo como ingrediente-chefe dessa inovação. A paixão é tanta que o termo hop head, antigamente utilizado para designar pessoas viciadas em ópio, tem novo significado, o de pessoas apaixonadas por lúpulo (hops, em inglês).
– Rock e cerveja: rock n’roll e cerveja nunca estiveram tão próximos. Do restaurante mais chique até o bar de esquina, praticamente todos os lugares nos Estados Unidos possuem música ambiente, sempre rock. Como amantes não só de cerveja mas também de música, aproveitamos mais ainda nossa estada por lá.
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