Conceitos pseudocientíficos e históricos sobre os motivos que levaram à marginalização da cerveja
por Gabriela Montandon e Paulo Patrus*
Enquanto caminhamos para o “nivelamento” do reconhecimento e apreciação da cerveja em relação ao já bem estabelecido vinho (se é que realmente algum dia tiveram reais motivos para se desnivelarem), muitos esforços são despendidos para que se revele quão encantador o universo da cerveja pode ser, para quem estiver disposto a descobri-lo.
O lento resgate de diferentes estilos de cervejas e seus variantes históricos nas gôndolas dos supermercados do Brasil indica que a cerveja veio (finalmente) para ficar. O fato é que, infelizmente, a maioria da população ainda se espanta e subestima toda a rica distinção entre as cervejas. Os vinhos, em contrapartida, carregam um tom de soberania quando o assunto é gastronomia.
Ambos os valores certamente derivam de aspectos essencialmente culturais, uma vez que assim como o vinho, a cerveja tem muitos terroirs: suas características organolépticas e harmonizações podem surpreender o amante de vinhos mais exigente. Além disso, ambos são produtos do mesmo (e complexo) processo biológico fermentativo e, da produção à estocagem, poderão ser igualmente complexos e diversos.
Em que ponto da história o vinho se tornou “chique” e a cerveja nem tanto?
Mas onde se originou essa discrepância entre vinhos e cervejas? Isso pode ser resquício de uma história muito longínqua. Embora a cerveja seja tão ou mais antiga que o vinho, historicamente o fermentado de cereais carregou, e ainda carrega, um preconceito muito maior.
Relatos literários e dramatúrgicos revelam que os gregos, ironicamente um dos primeiros povos cultivadores de grãos, nunca esconderam sua crendice em relação à cerveja. As raízes do preconceito parecem vir de Atenas: ainda que o consumo de cereais não se relacionasse com a feminilidade, para os atenienses, a cerveja tinha a capacidade de enfraquecer os homens por meio da capacidade de afeminá-los.
Hipócrates (considerado o pai da medicina, 600 a.C) embora não relatasse especificamente das cervejas, parece ser o responsável pela origem “científica” deste preconceito. Ele relacionava os “aspectos médicos” de alimentos e bebidas com suas possíveis influências no corpo e na mente: classificava pessoas e alimentos em quatro atributos básicos como quentes, frios, secos e/ou úmidos. Os homens, assim como o vinho, eram considerados quentes e secos, enquanto as mulheres, como a cerveja, eram consideradas como frias e úmidas. Não está bem clara qual era a regra de classificação para ambos mas, além disso, suas respectivas naturezas poderiam ser modificadas: a exemplo do pão, produto de cereais considerados frios e úmidos, passava a ser considerado um alimento quente e seco. Galen (300 d.C), influenciado pelos trabalhos de Hipócrates, foi o responsável por considerar a cerveja como bebida fria e úmida, ou seja, neste caso a fermentação dos grãos “frios” não alterava sua classificação.
Tomou vinho, cai de lado. Tomou cerveja, cai pra trás
Assim como o vinho, a cerveja era considerada uma bebida intoxicante. Os gregos desconheciam o álcool de ambas e consideravam que os poderes tóxicos das bebidas eram diferentes. O pensamento grego da época era tão dicotômico que além de a cerveja se associar à feminilidade e o vinho à masculinidade, acreditavam que tinham o poder de intoxicar de maneira diferencial. Aristóteles descrevia que pessoas embriagadas pelo vinho tinham tendência em declinar para frente ou para os lados, enquanto alcoolizados por cerveja, tendiam a cair para trás.
Theophrastus, influenciado por todas estas teorias, contribuiu ainda mais para o repúdio grego às cervejas. Mediante seu contato com as cervejas egípcias, ele atribuiu ao fermento como fator de apodrecimento dos alimentos. Como o processo de produção da cerveja dependia desses “iniciadores”, Theophrastus classificou a bebida como resultado de uma decomposição. O vinho, que não dependia de iniciadores já que sua produção era “espontânea” (desconheciam que as leveduras eram originárias das cascas da uva), não era considerado por ele como uma bebida decomposta.Portanto, os gregos consideraram por séculos a cerveja como feminina, fria e podre.
Bárbaros beberrões
Outro fator se somou ao preconceito histórico contra a cerveja: o repúdio dos atenienses à não moderação do consumo da bebida pelos bárbaros. Para Aristóteles e Platão, os fatores ambientais, como o clima e os alimentos, alteravam o corpo e a alma dos homens. Para eles, os homens do Norte, por viverem em climas frios, eram por demais passionais, agressivos e instintivos. Estas características atingiam diretamente sua inteligência que, para os gregos, se evidenciada principalmente pela incapacidade de autocontrole no consumo de álcool. Em virtude disso, os gregos tinham verdadeiro repúdio à não moderação do consumo da cerveja e outras bebidas alcoólicas comuns aos povos nórdicos. Para os atenienses, os verdadeiros homens regulavam seus instintos e, por serem mais moderados, sentiam-se mais masculinos por não exagerarem na ingestão de álcool. A cautela era tamanha que tinham até mesmo o hábito de misturar água ao vinho para seu consumo.
Por esses conceitos pseudocientíficos e preconceituosos, os gregos não apreciavam a cerveja por considerarem-na uma bebida não viril e feminina. Não se pode negligenciar estas raízes na atualidade, uma vez que muitos registros históricos sobre a cerveja foram escritos por gregos e/ou romanos com suas clássicas visões preconceituosas.
Marketing cervejeiro só para homens
Além disso, de forma irônica, acreditamos que a cerveja se distanciou culturalmente das mulheres, principalmente em virtude do apelo masculino que as campanhas de marketing impuseram. Mas, é histórico e corretamente associado o consumo de cervejas também por mulheres.
Por fim, os atuais difusores e amantes da cultura cervejeira têm uma árdua e dupla tarefa: como num duelo entre gregos e bárbaros, temos o dever de direcionar, para ambos os sexos, uma visão equilibrada da cerveja. A descoberta dos reais prazeres e a complexidade de uma boa cerveja só é mais clara e apropriada quando nos resta a sobriedade ateniense aliada à paixão nórdica.
———————
*Gabriela Montandon e Paulo Patrus são biólogos, cervejeiros caseiros e integrantes do grupo NEC – Núcleo de Estudos da Cerveja, sediado em Belo Horizonte (MG).
Leave a Reply
You must be logged in to post a comment.