Pitacos sobre o Festival Brasileiro da Cerveja 2014

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Assentada parte da poeira levantada pelo Festival Brasileiro da Cerveja ocorrido semana passada em Blumenau (SC), seguem alguns comentários e sugestões sobre o mais importante evento cervejeiro do país.

Organização impecável

Já estive em alguns festivais cervejeiros no mundo e a cada ano me impressiono com a excelência do de Blumenau. É impressionante como os caras aprendem com os erros das edições passadas e trabalham duro pra resolvê-los. Obra de gente séria e competente como Valmir Zanetti, Ricardo Stodieck, Georgia Rublesch e grande elenco.

A abertura de mais um dos pavilhões mostrou-se acertada, uma vez que, já na quarta-feira, 12, se fôssemos juntar o público presente espalhado por ambos os espaços em apenas um, certamente teríamos problemas de lotação. Já nos demais dias o público era visivelmente bem maior que nas edições passadas, o que refletiu nas vendas dos expositores, com crescimento de, em média, 40%, segundo apurei informalmente com vários deles.

Os problemas de anos anteriores com a falta de caixas para venda de Ninkasis (a moeda oficial do Festival) parecem ter-se solucionado neste ano com posições maiores, mais confortáveis e em maior número. Não vi filas de mais de 5 pessoas em cada caixa. Na área comum, mesmo com grande público, o ambiente era confortável, sem ninguém ficar se esbarrando. Desnecessário comentar as já conhecidas limpeza e segurança, sempre a níveis ótimos.

Concurso consolidado e aquecido

A cerveja, talvez, desperte o mesmo nível de paixão que o futebol, o que pode explicar, em parte, as críticas entusiasmadas que o II Concurso Brasileiro de Cerveja suscitou nas mídias sociais. Apenas o fato de tais críticas existirem já demonstra a consolidação que a competição obteve no meio cervejeiro, que nesse ano dobrou o número de cervejas inscritas. Todavia, como jurado que fui pelo segundo ano consecutivo — e conhecedor do que acontece nos bastidores do certame — cabem aqui algumas observações.

A escolha da diretriz de estilos da Brewers Association (BA) foi, mais uma vez, acertada, já que é essa que baliza os principais concursos mundiais, incluindo nessa conta o maior deles, a bienal World Beer Cup, que será realizada neste ano em Denver (EUA) — e da qual também serei um dos jurados. Em que pese a excelência do ótimo guia do Beer Judge Certification Program (BJCP), trata-se de uma diretriz voltada para cervejeiros caseiros, motivo pelo qual não pode ser utilizada para julgar cervejas já inseridas no mercado.

Juízes escolhidos com pluralismo

Já a escolha dos juízes, mais uma vez a cargo da coordenadora do Concurso Amanda Reitenbach, deve ser respeitada, o que faria mesmo se não fosse escolhido como integrante do corpo de jurados. Foram selecionados profissionais atuantes nas diversas esferas do mercado cervejeiro, buscando sempre a pluralidade de competências, sem panelinhas, apaniguamentos ou compadrios. Se muita gente boa acabou ficando de fora foi porque não tinha espaço suficiente para incluí-las, e essas pessoas, caso realmente sintam-se seguras com suas próprias competências, não devem sentir-se excluídas.

Julgar cervejas, é bom dizer, não é uma reunião botequeira de amigos pra decidir qual cerveja é a mais gostosa. Julgar cervejas requer, antes de tudo, incorporar a noção de que se está mexendo num mercado que envolve muito dinheiro, a premiar — ou castigar — profissionais que investem muito e sustentam famílias. Portanto, o estudo contínuo e sério, bem como a “hora-copo” (uma forma mais divertida de nomear o treinamento) são fundamentais. Todos nós pagamos dos próprios bolsos pelo privilégio de contribuir com um Concurso tão importante no cenário cervejeiro nacional, tão carente de estímulo. Acordamos cedo, passamos quase sete horas sentados quase sem conversar, a avaliar cervejas que não escolhemos, desenvolvendo bolhas nos dedos por preenchermos fichas de avaliação a cada amostra, as quais são entregues para os próprios cervejeiros após a competição. É extenuante e muitas vezes aborrecido, embora altamente instrutivo (e essa é a contrapartida). Jurados merecem respeito.

É imprescindível notar que, enquanto o número de cervejas inscritas no Concurso dobrou, o número de medalhas conferidas permaneceu quase o mesmo, conforme a imagem abaixo:

Imagem: David Figueira
Imagem: David Figueira

É claro inferir que, nesse ano, os juízes estiveram ainda mais comprometidos com o rigor técnico a cada amostra, comprovando, através de números, que estamos chegando bem perto da excelência, traduzida em um equilibrado número de medalhistas que premie quem realmente merece, sem desestimular quem está quase chegando lá.

Juiz com escritura em cartório

É fato que a escolha dos juízes poderia ser feita através de diplomas ou certificados. O entendimento é comum, já que estamos no Brasil, com raízes cartoriais, no qual canudos determinam o quem-é-quem, e até mesmo excluem competências consolidadas. Críticas à competência deste ou daquele jurado sempre existirão, mesmo se colocássemos trinta Mickaels Jacksons como julgadores — o qual, aliás, não tinha canudo nenhum a não ser o de jornalista.

No mesmo pensar, cervejeiros que possuem cervejas concorrentes devem, sim, ser jurados. Em todos os concursos sérios no mundo sempre foi assim, seguindo a percepção, acertadíssima, de que jamais devemos prescindir de conhecimentos preciosos e consolidados pra julgar cervejas (ou, a grosso modo, quem é mais competente pra ser jurado do que o próprio cervejeiro?). No Concurso Brasileiro de Cerveja, como sempre foi feito, o cuidado tomado foi o de não levar aos cervejeiros amostras de suas próprias cervejas. Apenas essa providência já é mais que suficiente para que não hajam marmeladas, ao mesmo tempo que se aproveitam os preciosos conhecimentos dos cervejeiros profissionais para julgar, em testes cegos, todas as demais cervejas que não são as suas próprias.

As campeãs

Final de campeonato é sempre assim, cheia de polêmicas e discussões acaloradas. A escolha das cervejas medalhistas não escapou à sina, com comentários positivos e outros negativos, chegando ao ponto da simples virulência rasteira e desembasada.

Nas mesas de julgamento, cada juiz recebia as amostras de cervejas em taças modelo ISO, separadas por estilo, sem quaisquer identificações que pudessem levar ao conhecimento dos seus rótulos (ou seja, o famoso “teste cego”). Ninguém, à exceção da organização, tinha acesso à sala onde eram servidas as cervejas nessas taças. Nenhuma “dica” era dada pelos organizadores a cada amostra. Era, sim, completamente impossível identificar os rótulos que estávamos julgando.

O julgamento se dá segundo as estritas diretrizes de cada estilo no guia BA, respeitando a inscrição de cada produtor. Isso fez com que acontecessem situações peculiares, nas quais cervejas excelentes fossem desclassificadas unicamente por não estarem inscritas em suas categorias corretas. Fica a dica aos cervejeiros para valerem-se dos serviços profissionais de sommeliers de cervejas a fim de, no ano que vem, melhor enquadrarem suas amostras, evitando tais situações.

Já algumas acusações de que algumas cervejarias fizeram “lotes especiais” ou trocaram rótulos unicamente para obter medalhas são absurdas, e sequer merecem comentários. Quem conhece uma cervejaria sabe que isso é impossível, além de contraproducente.

Açaí campeão

O cuidado da coordenação do Concurso foi tão extremo que as cervejas do tipo “tá na cara” (aquelas tão particulares que nós, brasileiros, mataríamos numa cheirada) foram direcionadas às mesas de julgamento dos jurados estrangeiros. Inferi, após o resultado, que assim aconteceu com a cerveja mais bem pontuada na competição, a Açaí Stout, da paraense Amazon Beer. Anunciar essa cerveja como a “melhor cerveja do ano” — a meu ver, equivocadamente — suscitou debates, em que pese ser a campeã uma belíssima cerveja.

Polêmicas à parte, a título de crítica construtiva, acho que a simples somatória dos pontos de todos os jurados para eleger a “cerveja do ano” poderia ser melhorada a exemplo de outros concursos, nos quais alguns jurados escolhem uma cerveja “best of show” a partir das cinco ou dez mais pontuadas, independente do estilo. De qualquer forma, fazendo isso ou mantendo-se a sistemática vigente, críticas e debates sempre acontecerão.

O que também pode mudar é a escolha da “Cervejaria do Ano”, a qual hoje é feita somando-se o número absoluto de medalhas, sejam ouros, pratas ou bronzes. Sugiro que se estabeleça um critério de pontuação simples para cada premiação, com peso maior às mais valiosas, de forma que ouros se sobreponham às pratas e essas às bronzes.

Fazendo história

Cada um de nós, sejamos cervejeiros, juízes, sommeliers, comerciantes ou mesmo consumidores, estamos construindo uma importante e linda história. Cada qual, à sua maneira, é responsável pela mudança gradual e saudável de hábitos de consumo do público em geral.

O Festival Brasileiro da Cerveja é, hoje, a peça mais fundamental dessa evolução. Apoiá-lo significa andar pra frente. Que as críticas sejam construtivas e, sobretudo, propositivas!