Há poucos dias os consumidores cervejeiros nacionais se deram conta que a gigante mundial do setor, Ambev, lançará na próxima semana uma tal “cerveja que não estufa”, seja lá o que isso signifique exatamente. Pra início de conversa, coloque-se que apenas os consumidores menos ingênuos perceberão que o objetivo não é o de deixar de “estufar”, mas mercadológico: a megacervejaria quer mesmo “fortalecer a marca Skol, reforçar o guarda-chuva de inovações da companhia e dar continuidade para o bom momento que a Ambev tem passado no Brasil”, nas exatas palavras do vice-presidente de marketing da companhia, Carlos Lisboa, extraídas de matéria recente do jornal Economia & Negócios.
Tirante as reais intenções da empresa — as quais, frise-se mais uma vez, não passam pelo desejo samaritano de “não estufar” o bebedor — o que realmente sobra? Qual é, de fato, o diferencial da nova cerveja, excluindo-se o fator marqueteiro? “A Skol 360 graus é uma variedade de cerveja de baixa fermentação com um ciclo de fermentação mais curto. Ela tem um pouco menos de calorias do que a Skol normal, é menos amarga e seu teor alcoólico fica entre 4% e 5%”, explicou o mestre cervejeiro da companhia, Luciano Horn, na mesma matéria jornalística.
Jamais se questione neste artigo a excelência do mestre cervejeiro da companhia. Afinal, mestres cervejeiros são técnicos responsáveis por dar vida aos projetos dos empresários. Suas funções precípuas residem em fazer a melhor cerveja — ou, pelo menos, a com menor número de defeitos — de acordo com os parâmetros ditados por quem os emprega. Se a empresa quer uma cerveja “leve-que-não-estufa”, paciência! Os profissionais técnicos da cerveja, por vezes, engolem suas aspirações por voos mais complexos em aromas e sabores, e elaboram a cerveja projetada não por eles próprios, mas pelas pesquisas entre os consumidores-paradigma do chamado “gosto brasileiro”.
E mais uma vez se pergunta, o que resta disso tudo? Este escriba responde, sem titubear: Sobra menos cerveja. Sobra menos amargor — como se o amargor fosse um subproduto indesejável nas brejas a ser paulatinamente extirpado do “gosto brasileiro”. Sobram menos aromas e menos sabores, já que, a exemplo de outras cervejas “comerciais” esta aqui também foi projetada pra ser servida em temperaturas à beira do congelamento, amortecendo papilas gustativas Brasil afora. Sobra, na mordaz definição do amigo Marcelo Moss (um dos criadores da cervejaria Baden Baden, de Campos do Jordão), o “sonrisal alcoólico” sensaborão, a cerveja de marmita.
Não se falará nas propagandas que a água da torneira, inodora e insípida, igualmente não “estufa”. Não se falará, de igual modo, que o conceito de “estufar” ou “empapuçar” varia de pessoa para pessoa, não importando a marca da cerveja. E, claro, nem se tocará na informação, óbvia, a constatar que o que “empapuça” é, na verdade, o que é consumido em demasia — afinal, como se diz, tudo o que é demais enjoa, incluindo nessa conta a cerveja. Qualquer cerveja.
Ainda não experimentei a breja, é certo, e o farei assim que disponível. E também não sou refratário ao conceito que reza que “há uma cerveja para cada ocasião”. Está claro que uma breja mais alcoólica e complexa não rima com praia e piscina no verão brasileiro. Acontece que, vamos estabelecer de uma vez por todas, cervejas mais “refrescantes” não precisam necessariamente ser menos saborosas — ou, mais além, menos amargas! Dá perfeitamente pra aliar sabor e amargor com refrescância, e vários estilos “refrescantes” estão aí pra apoiar minha afirmação — caso das verdadeiras Pilsners ou das Helles. Quer-se refrescância com menor amargor? Opte-se pelas cervejas de trigo ou pelas Fruit Beers. Isso tudo para elencar apenas quatro dos cerca de 120 estilos possíveis no panteão cervejeiro, a maioria deles disponível no Brasil.
E é justamente em decorrência dessa variedade tangível que ouso expor a minha impaciência ante as cervejas projetadas somente para “refrescar” e cujo mérito reside apenas em ter menos defeitos. Popularizar a cerveja não significa banalizá-la. Propalar que sua maior qualidade é “não estufar” é, pra dizer o mínimo, uma tremenda trapaça intelectual, a reduzir o nobre líquido a parâmetros rasteiros e imprecisos do tipo “forte” e “fraca”, “clara” e “escura” e, bem, a “que estufa” e a “que não estufa”.
Avante as cervejas que refresquem com sabor! Loas aos lúpulos de amargor, almas que são do nobre líquido! Eia às brejas complexas e com sabor de cerveja! Por uma cerveja que, enfim, estufe!
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Mauricio Beltramelli é Mestre em Estilos de Cerveja e Avaliação formado pelo Siebel Institute de Chicago (EUA) e editor do BREJAS, hoje o maior portal sobre cervejas na Internet brasileira.
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