Artigo redigido a cinco mãos por:
Mauricio Beltramelli, Marco Falcone, Fabiana Arreguy,
Paulo Schiaveto e Amanda Reitenbach
A fim de situar o leitor que ainda não participa tão ativamente no meio cervejeiro, é nossa obrigação explicar parte do título deste artigo: BJCP é a sigla para Beer Judje Certification Program, entidade fundada em 1985 nos Estados Unidos na intenção de “certificar” juízes para concursos cervejeiros.
Nos últimos tempos, no Brasil, vem tomando força a idéia de que é necessário formarmos juízes certificados no BJCP. Aliás, um teste já foi aplicado há alguns dias em Porto Alegre (RS) àqueles que se inscreveram. Estamos, inclusive, “importando” juízes estrangeiros que começam a anunciar em solo patropi ” cursinhos preparatórios” para o tal exame (essa venda de conhecimento expresso, por sinal, promete se transformar num belo mercado…).
Há uma analogia pontual — e comparativamente irresistível — a esse novo movimento, que é o tão temido exame da Ordem dos Advogados do Brasil aos bacharéis recém-egressos das faculdades de direito, sem o qual, caso reprovados, não podem exercer a advocacia. Já há vários anos surgiram no país cursos preparatórios para o Exame de Ordem, como se fossem cursos pré-vestibular. Tais cursinhos são notórios por preparar o aluno-bacharel apenas para a prova. Ali, por horas, dias e meses a fio, repisam-se exames passados da OAB, decoram-se artigos, leis, fórmulas e jurisprudências.
Decoreba sem prática
O resultado almejado dessa decoreba toda é o carimbo de aprovação no exame. Todavia, que é feito da prática e vivência jurídica? Os bacharéis que “passam” no exame reunem realmente todas as experiências necessárias pra começar a advogar? A resposta a essa indagação vem dos números: Na semana passada, divulgou-se que 88% dos bacharéis brasileiros — com ou sem “cursinho preparatório” — foram reprovados na última prova da OAB, a atestar a má qualidade do ensino nas universidades nacionais.
O que a analogia tem a ver com o universo cervejeiro?
Tudo e mais um pouco, já que não existem universidades para ensinar a degustar e avaliar cervejas. A despeito da existência de alguns cursos rápidos, tudo advém da vivência cervejeira, ou da experiência do degustador, aliadas ao estudo sobre estilos, métodos de produção, insumos, história cervejeira, visitas a cervejarias e sobretudo muita, mas muita experiência empírica. Traduzindo: muita cerveja degustada com seriedade — o que, cabe o aviso, não significa de maneira nenhuma embriagar-se. Ter provado a maioria de rótulos de cerveja que for possível, de maneira ordenada, metódica e imbuída de espírito científico, é a verdadeira chave para, realmente, conhecer de cerveja.
Não há notícia dando conta que o BJCP admite, para fazer sua prova de certificação, somente os que já possuem essa experiência. Nesse pensar, qualquer pessoa afeita ao estudo e à decoreba pode ser aprovada e certificada pela entidade. Mas, para qual finalidade seria usada essa certificação? Em tese, nos concursos cervejeiros pelo mundo.
Concursos pelo mundo não pedem certificação
Todavia, uma constatação é intrigante: A esmagadora maioria — senão a totalidade — dos concursos cervejeiros internacionais sérios não requer que seus juízes sejam certificados pelo BJCP. Sequer o guia de estilos da entidade norte-americana é utilizado, uma vez que tais concursos ou usam uma tábua própria de estilos, ou o guia da Brewers Association, entidade que reune as principais cervejarias artesanais dos Estados Unidos. E aqui cabe ser colocado mais um importante detalhe: O guia de estilos do BJCP não é atualizado desde 2008, uma infinidade de tempo quando se constata o galopante progresso mundial na criação ou adequação de estilos de cerveja (o guia da Brewers Association, por exemplo, tem alterações frequentes, a última delas feita em janeiro deste ano).
Dadas as constatações acima, pergunta-se: Qual a razão pela qual muitos cervejeiros brasileiros sentem ainda tanta necessidade de aferroarem-se aos juízes do BJCP?
Há setores cervejeiros mais progressistas e melhor conectados com a evolução — necessária — de estilos de cerveja, como a ACervA Mineira (associação de cervejeiros caseiros do estado), que até já fizeram um célebre concurso interno que premiou estilos “dissonantes” ao guia norte-americano, como cervejas de doce de leite e carqueja, visando conferir maior liberdade à criatividade dos homebrewers. Outras iniciativas sérias de estudo científico em curso no Brasil, a exemplo do Curso de Sommelier de Cervejas Doemens/SENAC, utilizam em sala de aula apenas o guia de estilos da Brewers Association.
Mas então o Beer Judje Certification Program é inútil? De forma alguma, a pensar-se que qualquer iniciativa de ensino sobre cerveja é mais que bem-vinda. E o guia de estilos do BJCP, embora um tanto anacrônico e avesso a mudanças e progressismos estilísticos, é um senhor guia, pleno de informação consistente e noções históricas de estilos de cerveja. O Ranking do BREJAS, por sinal, é baseado nele.
Percepções humanas acima das “robóticas”
É imprescindível observar, ainda, que, qualquer que seja o guia de estilos que utilizemos, temos de estar atentos à condição humana, que permite variações em nossos modos comportamentais, de humor, de condições químicas e biológicas. Não somos máquinas, como cromatógrafos e outras, destinadas a perceber nitidamente os atributos de uma cerveja. Mas entendemos como o conjunto de tais atributos reage em nossa percepção. A norma funciona como orientadora. Contudo, se nos enquadrarmos totalmente nela, seremos seres cibernéticos, e não humanos que, nessa condição, colocam suas experiências emocionais para relatar percepções sensoriais.
O que se convida a pensar, neste artigo escrito a cinco mãos, é sobre a noção errônea de que o BJCP, tanto como formador de juízes quanto como guia de estilos, é o zênite, a palavra final. Se assim fosse, os grandes nomes da cultura cerveja, aqui e lá fora, teriam que ser obrigatoriamente “credenciados” pela entidade, o que acontece somente em raríssimos casos.
Por enquanto, é a experiência cervejeira — aqui definida como a junção da atividade empírica com o estudo técnico — a única capaz de credenciar juízes de cerveja. Passar na prova é apenas um detalhe.
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Mauricio Beltramelli, editor do BREJAS, é mestre em estilos de cerveja e avaliação pelo Siebel Institute (EUA) e sommelier de cervejas pela Doemens-SENAC
Marco Falcone é cervejeiro da cervejaria mineira Falke Bier e sommelier de cervejas pela Doemens-SENAC
Fabiana Arreguy é jornalista, editora do programa radiofônico Pão e Cerveja e sommelier de cervejas pela Doemens-SENAC
Paulo Schiaveto é mestre cervejeiro e engenheiro de produção formado pela USP e em Louvain-la-Neuve (Bélgica)
Amanda Reitenbach é mestra em engenharia de alimentos e tecnologia cervejeira pela Universidade Federal de Santa Catarina e UFLA, e sommelier de cervejas pela Doemens-SENAC
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