Tecnicismo X Sensibilidade: Uma discussão cervejeira

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Estaríamos criando “juízes robôs” de cerveja?

Por Fabiana Arreguy *

Regras existem e não são de todo ruins. Sem elas viveríamos no caos, na barbárie. No entanto é na falta de ordem que trabalha nosso poder criativo. Ideias não aceitam cabresto e se queremos incentivar o surgimento delas, precisamos abrir mão muitas vezes das regras.

Todos sabem que artistas são de certa forma loucos. Afinal é da profusão de ideias desconexas aos olhos do mundo que surgem suas criações. Fico imaginando se seria possível um genial Van Gogh criar em uma repartição pública, em meio a carimbos e processos de trabalho imutáveis…

Cervejeiros, para mim, são artistas. E por isso precisam também de um pouco de loucura, de insanidade, para dar vazão às novas criações. Copiar uma receita que lhe dá grande prazer em beber não pode ser o objetivo máximo de um cervejeiro! Deve ser muito frustrante ser sempre o copista, nunca o gênio que inventou. Mais frustrante ainda para o cervejeiro deve ser a sua criação  julgada com burocrático rigor.

Desde o início do ano eu vinha estudando o BJCP ( Beer Judge Certification Program) para prestar a prova aplicada pela primeira vez no Brasil. Por motivos alheios à minha vontade, não pude prestar o teste e, confesso, fiquei muito decepcionada por precisar desistir desta  que seria  uma prova de compromisso pessoal com a  seriedade da avaliação de cervejas (demanda que cada vez mais se apresenta a mim, vinda de novos e de já experientes cervejeiros ). No fim do ano passado me formei Sommelier de Cervejas pela Doemens Academy/Senac SP, justamente com esse pensamento, de ser séria e capacitada para tal atividade.

Muita técnica, pouca experiência

É esse compromisso que me faz levantar uma questão: a do tecnicismo exacerbado na avaliação e julgamento de cervejas, em detrimento da experiência e da sensibilidade do degustador.

Ao estudar o BJCP durante todo esse tempo, pude comprovar a qualidade técnica do guia e o foco na construção exata dos estilos, para nortear os cervejeiros sobre como evitar defeitos, má construção das receitas e uso incorreto dos insumos. São de altíssima valia tais ensinamentos mas, aqui me coloco como advogada do diabo, não é de certa forma também uma fôrma? Não tende a levar os cervejeiros a produzir clones de cervejas renomadas? E nós, como avaliadores, não somos levados a procurar cervejas genéricas e não genuínas? Ressalto, minha intenção é tão somente levantar um ponto para reflexão!

Pensemos em um exemplo fictício, tomando como personagem uma cerveja das mais inteligentes feitas no Brasil – a Vivre pour Vivre, da Falke Bier. Essa cerveja, conforme os próprios criadores, surgiu de um erro. Isso mesmo, diante da contaminação de toda uma produção da Monasterium por bactérias lácticas, eles seriam obrigados a jogar 600 litros pelo ralo… mas, como eu dizia no início, é do caos, da falta de ordem, que surgem as ideias mais criativas. Em vez de jogar fora tanta cerveja, os Falcone ousaram e voltaram com a bebida contaminada para os tanques de fermentação, inspirados na sabedoria belga para  produção das emblemáticas lambics. Três anos depois perceberam que as leveduras lácticas haviam reagido felizes naquele meio, gerando uma “quase gueuse”. E já que a inspiração vinha das lambics, era hora de acrescentar frutas maceradas naquele caldo. Cerejas ou framboesas?? Nenhuma das duas. Tiro certeiro – jaboticabas! Assim nasceu essa cerveja-conceito. Agora, imagine você, a Vivre pour Vivre sendo julgada em um concurso, à luz tecnicista? Não existe nenhuma outra com as mesmas características, nem com a mesma fruta . Catalogada no BJCP, ela tem de ser encaixada no estilo 20 – Fruit Beer, que veda uso de qualquer essência artificial. Para um avaliador desavisado, que nao conhece o que seja jaboticaba, os aromas produzidos podem ser interpretados até como off-flavors! O sabor pode ser interpretado como produzido artificialmente. E o que acontece então? Uma cerveja dessas pode  ser desclassificada!

Legião de “caçadores de defeitos”

O que estou querendo dizer é que não podemos ser “caçadores de defeitos”ao avaliar e julgar cervejas. Todas as coisas têm um sentido de existir. O da cerveja só pode ser o de dar prazer a quem a toma! Ao procurarmos enquadrar a bebida burocraticamente nos estilos, sem nos preocuparmos com a complexidade da receita, sem nos atentarmos para os detalhes que, na verdade, são a assinatura do cervejeiro, estamos de certa forma matando a criatividade e a possibilidade de descoberta de novos e excelentes estilos.

Agora, no fim de junho, cervejeiros do Brasil inteiro vão competir no Sexto Concurso Nacional de Cervejas Artesanais. Muitos deles vêm buscando uma receita única, própria, com sua marca, ainda que tenham de obedecer às regras impostas pelos estilos escolhidos pela organização do concurso. Eu estarei lá como jurada, na qualidade de sommelier de cervejas. O que imponho a mim é conhecer muito bem cada estilo, mas sem querer matar o DNA de cada cerveja avaliada.  Sem querer encontrar o clone da Urquell!! Não seria justo esperar isso de qualquer cervejeiro! E não seria justo com o propósito do próprio concurso que, afinal de contas, é uma competição de cervejas artesanais e não de cópias da grande indústria.

Sei que muitos cervejeiros, se não todos, se inscrevem nos concursos não somente para ganhar o título de melhor artesanal do ano, mas para ter a sua cerveja bem avaliada por pessoas do mais notório saber (Paulo Schiavetto e Cilene Saorin, por exemplo, são avaliações de ouro!). Qual não seria a decepção desses cervejeiros ao receber suas fichas de avaliação, após o concurso, e constatar que perderam muitos pontos por defeitos constatados somente por um ou outro jurado e, o mais grave, sem qualquer orientação do avaliador sobre como alterar os tais defeitos e sobre o comprometimento provocado por eles à cerveja. Citar os nomes de Cilene e Schiavetto não foi em vão,  pois é justamente  a generosidade no julgamento desses avaliadores que encanta os cervejeiros e faz com que eles confiem fortemente nas suas avaliações. Essas valem mais do que aulas de estilo ou imposições de regras!

Por tudo isso é que lanço essa reflexão: Tecnicismo ou Sensibilidade – o que deve pesar mais? E por que não aliar um ao outro, sendo um avaliador justo consigo mesmo e com aquele a quem se julga?

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* Fabiana Arreguy é jornalista e sommelier de cervejas. Semanalmente, ela comanda a coluna Pão & Cerveja,fabianaarreguy que vai ao ar todas as sextas-feiras às 11:45 da manhã pela rádio CBN de Belo Horizonte (106,1 FM). Ouça ao vivo o programa ou curta os programas anteriores gravados e disponibilizados aqui no blog pelo BREJAS. Para a experiência ficar completa, acompanhe também o Blog Pão & Cerveja.


Comments

2 responses to “Tecnicismo X Sensibilidade: Uma discussão cervejeira”

  1. Marcos O. Jr. Avatar
    Marcos O. Jr.

    Prezada Fabiana,

    realmente bastante pertinente a sua preocupação com a criação de “caçadores de defeitos”. Entretanto, creio que o bom senso do avaliador (juiz) e do cervejeiro deve sempre ser levado em conta.

    O juiz em não exagerar nas avaliações, tentando seguir um padrão, comparando a cerveja em questão com os exemplos do guia em questão. Por outro lado, o cervejeiro deve estar ciente de que ao submeter sua cerveja um concurso, ela será avaliada em função de um estilo e isso é essencial pois, caso contrário, seria extremamente difícil realizar um concurso.

    Se o avaliador tiver experiência suficiente para não fazer uma avaliação incoerente da cerveja e se o cervejeiro levar em consideração seus objetivos e inscrever apenas as cervejas que se enquadram no referido processo de avaliação, creio que todos saem ganhando: o avaliador ganha experiência e a oportunidade de experimentar uma boa cerveja e o cervejeiro ganha uma avaliação construtiva a respeito de sua cerveja.

    Nos casos que fogem aos estilos (como no caso da Vivre pour Vivre) e caem nas categorias “coringas” (catch-all categories) realmente fica difícil um avaliador estrangeiro conhecer um ingrediente específico (no caso a jabuticaba). Neste caso, creio que o mais coerente seria tentar avaliar a elegância e delicadeza do conjunto. Todavia, aí caímos em outro problema: a escassez de avaliadores tupiniquins.

    Claro que o Brasil conta com excelentes profissionais, mas a humilde comunidade cervejeira ainda carece de um número mais expressivo de colaboradores ativos.

    Com a possibilidade de certificação de um grupo de avaliadores menos experientes que os casos citados, seria criada uma oportunidade ímpar para este grupo aprimorar sua técnica e engrandecer seu conhecimento com a troca de experiências com as grandes figuras do cenário cervejeiro.

    Por fim, como o próprio guia do BJCP esclarece, o principal objetivo do processo de avaliação é produzir comentários construtivos ao cervejeiro, sempre com o objetivo de enriquecer o processo, nunca depreciar. Cabe aos envolvidos a coerência e a parcimônia.

    Pão e cerveja (estejam elas no BJCP ou não)!
    Marcos

  2. Fabiana, sua preocupação é muito pertinente pois mesmo sendo novo no mundo da cerveja de qualidade, já vi isso ocorrer em minha area profisinal, a Cutelaria Artesanal, e o resultado é que com frequencia vemos o uso de parametros de julgamento adequados para determinada categoria sendo aplicados universalmente, com resultados quase sempre desastrosos.
    Creio que a criação de um conjunto de parametros básicos que permita a classificação a apreciação adequada de cada estilo é importante mas muito mais imporante que isso é saber o que se está procurando julgar – o que exatamente se espera do item sendo avaliado – e aí o que conta a sensibilidade e a compreensão do avaliador.

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