Até o leitor brejeiro mais desligado certamente já ouviu falar da Lei de Pureza da Cerveja — ou, em alemão, Reinheitsgebot. Promulgada em 1516 por Guilherme IV, duque da Baviera (região alemã onde está Munique), a norma determinava que a breja local só poderia, dali em diante, ser produzida utilizando-se apenas água pura, malte e lúpulo (o fermento, por sua vez, foi incluído na lei algum tempo mais tarde, uma vez que ainda não era conhecido).
Tanto no meio cervejeiro quanto nos assuntos botecais é useiro e vezeiro afirmar, com certo ar de respeito reverencial, que a Reinheitsgebot é uma lei monolítica a qual ainda se encontra em pleno vigor na Alemanha, e que nem os séculos e as pressões de mercado puderam abalar.
Acontece que este escriba nasceu cético e se tornou advogado por profissão. O ceticismo me levou a querer pesquisar o assunto. O direito me emprestou as manhas pra buscar mais facilmente as informações que o leitor –se tiver espírito de aventura e paciência suficientes pra ler até o final do texto — encontrará a seguir. Afinal, a Lei de Pureza da Cerveja realmente continua valendo?
A resposta à pergunta começa a se delinear em 1984, quando a Comissão das Comunidades Europeias processaram a Alemanha ingressando em juízo com uma “ação por incumprimento fundamentado”. Isso porque a Alemanha vinha impedindo a entrada no país de cervejas do restante da Europa que não seguiam a Reinheitsgebot. Como se fosse uma II Guerra rediviva, a briga antagonizava a Alemanha contra o resto da Europa. E o motivo era a cerveja.
A ação internacional alegava que a Alemanha estava querendo instituir verdadeira reserva de mercado, o que é incompatível com a própria razão de ser da Comunidade Européia, que tem como pilar básico o livre-mercado entre os estados-membros. A Alemanha, em resposta, defendia que estava ocorrendo efetiva discriminação inversa dos produtores nacionais, que passaram a contar nos respectivos mercados internos com a concorrência de produtos com a mesma designação, mas elaborados com um menor grau de exigência.
Mas havia aí, já de muito tempo, uma certa malandragem dos alemães. Pouca gente sabe que a velha Reinheitsgebot foi praticamente extinta, incorporada em 1952 pela menos conhecida Biersteuergesetz (lei fiscal sobre a cerveja). Esse dispositivo contém, por um lado, regras de fabrico que só se aplicam como tais às fábricas de cerveja estabelecidas na Alemanha e, por outro lado, uma regulamentação sobre a utilização da denominação “Bier” (cerveja, em alemão), que vale tanto para as cervejas fabricadas na República Federal da Alemanha como para as cervejas importadas.
Vejam só, amiguinhos. As regras de fabrico das brejas são enunciadas no artigo 9° da Biersteuergesetz. O n° 1 desta disposição prevê que, para a preparação de cerveja de baixa fermentação, não pode ser utilizado senão malte de cevada, lúpulo, levedura e água. O n.° 2 do mesmo artigo subordina a preparação da cerveja de alta fermentação às mesmas prescrições, autorizando, todavia, a utilização de outros maltes e a utilização de açúcar de cana, de açúcar de beterraba ou de açúcar invertido tecnicamente puro, bem como de glucose e de corantes obtidos a partir de açúcares dos referidos tipos.
E é aí que entra a malandragem. Segundo o artigo 17, n° 4, do regulamento de aplicação da Biersteuergesetz (Durchfuehrungsbestimmungen zum Biersteuergesetz, de 14 de Março de 1952), podem ser concedidas derrogações às regras de fabrico dos números 1 e 2 do artigo 9° da Biersteuergesetz, para a preparação de cervejas especiais e de cerveja “destinada à exportação ou a experiências científicas”.
Pra bom entendedor, um pingo é letra. O aparente emaranhado de normas tentava esconder uma constatação óbvia: Para a cerveja alemã a ser exportada, podia sim, ter aditivo além dos ingredientes da lei. Mas, na cerveja estrangeira que era importada para solo alemão, não podia. A Reinheitsgebot, portanto, só valia para “os outros”…
Vendo que ia perder a parada nos tribunais da União Europeia, a Alemanha invocou outra lei doméstica, a Lebensmittel und Bedarfsgegenststaendegesetz, de 1974, que rege o comércio dos gêneros alimentícios, dos produtos à base de tabaco, dos produtos cosméticos e de outros bens de consumo, visando à proteção da saúde pública.
A Comissão da UE, claro, deu um pau na Alemanha, aplicando à questão o “Princípio da Proporcionalidade”. Observem um trecho do texto traduzido do acórdão da Comissão:
“Ao aplicar tal regulamentação aos produtos importados que contenham aditivos autorizados no Estado-membro produtor mas proibidos no Estado-membro importador, as autoridades nacionais devem, todavia, face ao princípio da proporcionalidade que está na base da última fase do artigo 36.° do Tratado (de livre circulação de mercadorias na CEE), limitar-se ao que seja efetivamente necessário para a proteção da saúde pública. Por isso, a utilização de um determinado aditivo, admitido num outro Estado-membro, deve ser autorizada no caso de produtos importados deste Estado, desde que, tendo em conta, por um lado, os resultados da investigação científica internacional, especialmente dos trabalhos do Comitê Científico Comunitário da Alimentação Humana e da Comissão do Codex Alimentarius da FAO e da Organização Mundial de Saúde, e, por outro lado, os hábitos alimentares no Estado-membro importador, este aditivo não apresente um perigo para a saúde pública e corresponda a uma necessidade real, designadamente de ordem tecnológica. Esta última noção deve apreciar-se em função das matérias-primas utilizadas, tendo em conta a apreciação delas feita pelas autoridades do Estado-membro produtor e os resultados da investigação científica internacional. O princípio da proporcionalidade exige igualmente que os operadores econômicos tenham a possibilidade de pedir, por um processo que lhes seja facilmente acessível e possa ser concluído em prazos razoáveis, que seja autorizado o emprego de determinados aditivos por um ato de alcance geral.”
A Alemanha não se deu por vencida. Invocando ainda um artigo da Biersteuergesetz, tentou impedir que as cervejas não-alemãs que contivessem aditivos não pudessem ser comercializadas no país com a denominação “bier”. A Comissão deu pau mais uma vez:
“Um Estado-membro não pode reservar o uso de uma denominação apenas para os produtos que satisfaçam os imperativos da sua regulamentação nacional, invocando as exigências de proteção dos consumidores porque, por um lado, as representações dos consumidores, que podem variar de um Estado-membro para o outro e ser suscetíveis de evoluir com o tempo no interior de um mesmo Estado-membro, não podendo a legislação desse Estado servir para cristalizar certos hábitos de consumo, para estabilizar uma vantagem adquirida pelas indústrias nacionais que se dedicam a satisfazê-los, e, por outro lado, uma denominação que tenha um caráter genérico não pode ser reservada apenas aos produtos fabricados segundo as regras em vigor nesse Estado-membro.”
OK, pra não dizer que a derrota foi completa, a Alemanha levou pelo menos uma. Por consenso, admitiu-se que a cerveja que contivesse aditivos não poderia conter no rótulo que seria fabricada segundo os ditames da Reinheitsgebot.
Moral da história? O “grande mercado” ganhou de novo. As multidões de produtores de cerveja na Alemanha estão baixando a cabeça às novas regras do ramo. Respondendo aos desafios da competição global e do consumo em declínio, a indústria cervejeira alemã agora faz milhões de experimentos para assegurar que a pequena cerveja tradicional, um patrimônio cultural de fato, possa matar a sede do público e ainda assim lucrar. As estratégias envolvem uma redução de preços em um mercado que já é brutalmente competitivo.
A Reinheitsgebot? Hoje, segue a Lei de Pureza da Cerveja quem quer. A norma funciona, de fato, de um lado, por respeito às tradições da Escola Cervejeira Alemã. De outro, como instrumento de marketing a “atestar” a excelência de um determinado produto.
Entrementes, pra mim não importa o último aspecto. Prefiro manter comigo o espírito romântico da cerveja alemã e, confesso, me sinto mais seguro ao ler no rótulo que uma breja é produzida segundo a Reinheitsgebot. Mania minha.
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