Ao longo da história da humanidade, a cuspadara na cara consolidou-se como uma das maiores, senão o maior ultraje que se podia experimentar. A cusparada não agride fisicamente. Não deixa marcas, hematomas ou sinais aparentes após a face limpa. Todavia, o efeito psicológico é inegável, tanto pra quem cospe quanto pra quem é cuspido. Mesmo o cuspe, ou o escarro, sempre foi considerado — acima de fezes, urina e outras secreções mais escatológicas — uma substância indesejada, a causar sempre variadas reações de ojeriza, daí a eficiência do ato insultante.
Certa vez o filósofo grego Diógenes foi convidado a visitar a casa de um homem muito rico, que orgulhosamente lhe mostrava os caros objetos que adornavam a residência, mas advertindo-o que não cuspisse no chão (como era hábito naqueles tempos) em razão da limpeza da casa. Em determinado momento, Diógenes junta uma boa quantidade de saliva em sua boca e dá uma bela cusparada na cara do anfitrião. Ante a indignação do homem rico, o filósofo explica que sua cara foi o lugar mais sujo que encontrara naquela residência.
Nas últimas duas semanas o país foi brindado com notícias de trotes violentos promovidos por universitários veteranos para mimosear calouros recém-chegados. As reportagens, em si, não espantam mais, já que em todo começo de ano ocorre o mesmo, com variados graus de violência. A novidade desse ano, porém, foi o advento de uma novel modalidade de humilhação: a cusparada de cerveja.
Nos flagrantes em vídeo veiculados nos quatro cantos do país, em dado momento, pode-se ver um jovem veterano de camiseta branca com uma latinha de cerveja na mão. Em vários momentos da filmagem, ele sorve porções da bebida e a cospe, em longos e caudalosos jatos, na face do pobre calouro. A mensagem é clara, como que a dizer “eu atiro o que há de pior em mim — meu cuspe — no que você acredita ser o melhor em você — seu rosto, ou, mais a fundo, a sua personalidade”.
Mas porque a cusparada tinha de ser com cerveja? Especulemos. Talvez para “potencializar” o jato, vez que o veterano não teria quantidade suficiente de saliva, e a cerveja era o líquido mais à mão do jovem? Ou, em exercício especulativo mais profundo, o veterano desejou que o calouro cheirasse mal depois de atingido pelo líquido? Ou ambas as alternativas, ou ainda terceiras e quartas razões não contempladas pela imaginação deste escriba?
Não importa. A ignomínia do ogro veterano foi perpetrada com a cerveja. Esse líquido milenar que, ao longo da caminhada do homem sobre a Terra, salvou milhões de vidas da morte por inanição, uniu e desuniu povos, criou novas rotas comerciais, alimentou os mais santos monges, ajudou a estabelecer as mais variadas e ricas culturas. Justo a cerveja, esse amálgama social dos dias de hoje que nem a onda do “politicamente correto” em sua forma mais besta, fundamentalista e chata conseguiu deitar chão. Justo a cerveja!
“Mas era cerveja de baixa qualidade!”, bradarão os beer-evangelizados mais radicais. De fato, é muito pouco provável que o ultraje tivesse sido perpetrado com uma Chimay Bleue. Na verdade, não importa a qualidade da breja que foi usada como instrumento da humilhação. Da mais complexa trapista à mais prosaica “brazilian corn beer” — como jocosamente alguns denominam as lagers insossas de sempre — cerveja é um líquido merecedor de maior respeito. Justo a cerveja!
Claro que tudo isso possui uma causa bem escondida, mas evidente se devidamente perscrutada. Neste país, a orientarmo-nos pela propaganda maciça das cervejas de sempre, a bebida jamais terá qualquer cheiro de dignidade. Os temas sempre abordam o consumo excessivo, o preço baixíssimo, as bundas, os sambistas, os “ãos”, as estupidamente geladas, a galera reunida pra encher a cara. História, ingredientes, estilos? Esqueça. Disso não se falará. Cerveja, aqui, é coisa “de pinguço”, de gente que bebe por beber, de calouros e veteranos que, depois do “pedágio” nos cruzamentos, vão confraternizar e brigar nos botecos da “gelada e barata” ao lado das faculdades.
Porque não interessa às grandes cervejarias alardear as reais virtudes dos produtos que lançam nos mercados? Porque ainda não ocorreu a essa turma ao menos tentar situar a cerveja no patamar histórico que sempre esteve em países mais civilizados? Porque as propagandas são tão desrespeitosas com o líquido que deu nome a deuses?
Claro que, por causa dessa festa absurda de mulheres bem louras e corpos sarados, essa prática mercantil da propaganda alardeando consumos massivos chega ao raiar deste século com os dias contados. Assim como aconteceu com a propaganda do cigarro, as campanhas milionárias de cervejas, na forma que se apresentam hoje, não mais existirão. Virarão coisa do passado, a chocar quem, anos depois, consultar o YouTube em busca de nostalgia.
O triste é que, por causa desses boçais, o mais provável é que esse banimento de parâmetros equivocados e socialmente intoleráveis arraste consigo a boa cultura cervejeira, calcada na história, nos ingredientes e no hábito — e não no vício — de consumir cerveja de estirpe. Como quase sempre acontece, a parte podre acaba por putrefazer o quinhão são. Todas as cervejas e todos os hábitos de consumo inerentes a ela, até os mais saudáveis, serão de roldão considerados coisa “de pinguço”.
Acontece assim quando a cerveja é usada como mero instrumento de injúria, como a cusparada do veterano no calouro. Justo a cerveja!
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