Por Leonardo Sewald * (com revisões de diversos profissionais do setor cervejeiro)
Por que a cerveja artesanal tem um preço tão alto no Brasil?
Essa pergunta tem uma resposta complicada e longa. Para ajudar a esclarecer um pouco a questão, escrevemos um artigo, que foi apresentado durante a mesa redonda dos Blogueiros Brasileiros de Cerveja no Festival da Cerveja de Blumenau 2013.
Cerveja artesanal está na moda hoje no Brasil. Microcervejarias novas surgindo, novos restaurantes aparecendo todo mês, a massa de profissionais envolvidos no meio cervejeiro aumentando, homebrewers crescendo… Ao que tudo indica, um mercado que está crescendo. E de vento em popa.
É inevitável a comparação com outros mercados de cervejas artesanais mundo afora, como Inglaterra, Alemanha, Bélgica e, especialmente, Estados Unidos. Pois é, sobre isso, tenho algumas coisas a dizer. Nem todos irão concordar com o que eu digo aqui. Tudo bem com isso, é o debate que nos faz crescer enquanto seres humanos, já diria Sócrates.
Vamos direto ao ponto: podemos comparar sim a nossa realidade com a de outras nações cervejeiras, acho inclusive que devemos fazer isso para nos informarmos, adaptarmos as transformações à nossa realidade e aprendermos com os erros dos outros. Mas com os pés no chão.
Transformações são lentas. O Brasil recém começou uma revolução cervejeira, coisa de cerca de 10 anos com o ressurgimento das primeiras microcervejarias no país. E, como no caso de outras nações cervejeiras, isso iniciou nas mãos de poucos pioneiros que tentaram (e o fazem até hoje) de todas as formas mudar a nossa realidade de mercado em um ambiente inóspito: um país onde o consumidor ainda desconhece muita coisa no que diz respeito à cerveja; impostos são abusivos; não existe colaboração; logística é um pesadelo; o ponto-de-venda não entende o produto com o qual está trabalhando, dentre outros fatores prejudiciais que irei descrever mais adiante.
Estamos juntos curando uma miopía histórica da população. Mas nós só iremos conseguir fazer isso da melhor forma com qualidade e informação. Quem já me conhece sabe que eu sempre bato na mesma tecla da qualidade, palavra tão banalizada por grandes empresas que chega a ser sem graça de usar. Mas é ela que importa. Estamos resgatando o real sentido da palavra qualidade: no processo produtivo, na interação com o consumidor, na arte, na história. Sem qualidade não há cerveja artesanal que resista.
A questão que talvez esteja faltando para muitos é a informação. Uns possuem mais dela do que outros, e isso é normal. O ponto que vejo hoje é que ainda existe muita desunião no setor. Seja esta desunião entre as cervejarias, entre pontos-de-venda, entre sommeliers e juízes BJCP. Muita gente brigando ao invés de trabalharem juntas. Isso para mim está arraigado no fato de que as pessoas, por não terem toda a informação na mão, acabam emitindo opiniões pouco embasadas e, infelizmente, injustas.
Quem já abriu um negócio, foi pra guerra ou passou por uma situação de vida ou morte já falou a célebre frase: “só quem estava lá sabe…”. Isso não precisa ser assim. Na realidade, quanto mais fugirmos disso e compartilharmos as nossas aflições, melhor será para todos, os que estão no lado da produção podem com isso construir de forma coletiva uma solução adequada para os problemas enquanto os que estão no lado da divulgação podem disseminar o conhecimento embasado ao alcance de todos. Em suma, podemos nos aproximar uns dos outros. OK, isso pareceu frase de grupo de auto-ajuda…
Vou dar um exemplo que acho que seja de interesse geral: hoje se fala que a cerveja no Brasil é muito cara. Pra vocês verem como as coisas não são tão simples, vocês perceberão que nunca há apenas um vilão e a coisa é mais complicada do que parece.
Vocês sabiam que, além de impostos altos, o Brasil é um dos países com a logística mais cara do mundo? Nos comparando com países de dimensões continentais como os Estados Unidos, onde 90% dos transportes pesados para portos no país são feitos via trem ou balsas, aqui no Brasil temos menos da metade deste valor percentual (33% – dados da Informa Economics). Aqui, utilizamos estradas, porque o Brasil está bem longe da quilometragem de trilhos de trem quando comparado aos EUA (Os EUA é o país com maior quilometragem de trilhos no mundo, com 226.427 km. O Brasil tem 29.000km). Nosso país tem estradas péssimas, pedágios caros e um governo ciente do problema que é ótimo em planejar – mas péssimo em executar. Para ajudar a desmistificar a questão do preço e informar a todos, elaborei, com a ajuda dos meus queridos colegas de profissão, este guia sucinto que fala sobre o custo da cerveja no Brasil. De maneira alguma iremos esgotar a discussão em cima de cada ponto aqui; isso é apenas uma maneira de informa-los sobre o meio inóspito em que nós, cervejeiros, estamos inseridos e tentando de todas as formas fazer com que um produto de qualidade chegue nas mãos de vocês. Talvez assim, com as informações corretas, as pessoas passem a entender melhor a nossa situação e nos fornecer mais apoio para que a indústria cervejeira no Brasil cresça e deixe sua marca permanente.
A – armazenamento
Quando se produz algo, é preciso de espaço para armazenar o produto finalizado. Apesar de termos dimensões continentais, a esmagadora maioria dos produtores, sejam eles do setor agrícola ou da indústria, ainda dependem de terceiros para armazenagem dos seus produtos. Novamente comparando com um país grande como o nosso, os EUA: metade das operações de armazenamento do setor agrícola americano está localizada nas próprias fazendas. Aqui no Brasil, apenas 6% da produção agrícola do país é armazenada no local onde foi cultivada, sendo que ela é transportada (leia-se: impactando aí um custo logístico) para um terceiro que a armazena e que, obviamente, cobra por isso. Quem paga, no final das contas? O consumidor, lá na ponta… Mas porque diabos estou falando de agricultura? Lembrem que uma cervejaria utiliza malte e lúpulo, onde o malte, mesmo em grande parte sendo produzido no Brasil, ainda custa caro; o lúpulo, por ser importado, mais ainda.
B – burocracia
Burocracia custa caro no Brasil. Abrir uma cervejaria nos EUA é um processo que demora, em média, 3 semanas (em alguns casos exorbitantes, como relatado por alguns colegas de profissão americanos em recentes visitas ao país, 3 meses) Partindo-se do zero burocrático (leia-se, sem licenças ou alvarás), em 3 semanas se tem uma cervejaria legalizada. Se os equipamentos já estiverem prontos, é só iniciar a produção. Aqui no Brasil, temos exemplos de cervejarias que estão a anos sem sair do papel, tramitando no spaguetti burocrático também conhecido como governo, um órgão tão deficiente para atender os pequenos produtores que, por achar que cervejaria é algo grande e que transforma a paisagem, solicita mundos de documentação e cobra caro por uma simples assinatura. Mas o que impacta o custo da cerveja aqui não é o que se paga para obter um alvará ou o famigerado registro do MAPA, mas sim o tempo em que a empresa, já aberta, precisa ficar em um limbo, sem autorização para produzir.
C – custo Brasil
Termo utilizado para descrever o conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas e econômicas que encarecem o investimento no país. Pode-se dizer que esse é um dos principais vilões desta lista.
D – distribuição
O Brasil é um pesadelo logístico. Como já exemplificamos acima, com uma logística complicada e cara, composta prioritariamente de transporte rodoviário (o mais caro de todos), isso reflete diretamente no custo.
E – energia
O Brasil é o 4º país do mundo em custos de energia (dados de 2012 – fonte: The Economist), ficando atrás apenas de países que não produzem energia própria e precisam adquiri-la de fontes externas. Cervejarias dependem fortemente de fontes de energia como gás e eletricidade para tocarem suas produções e ainda não é comum as cervejarias do país utilizarem meios sustentáveis pois ainda são caros de se implementar.
F – fornecedores
Despreparados para atender o pequeno produtor, boa parte dos fornecedores acabam cobrando caro demais por insumos, equipamentos e outros itens que compõem os custos da empresa.
G – grãos
Cervejarias usam cevada na forma malteada para produzir cerveja. Além do já conhecido malte do tipo Pilsen, tipicamente utilizado pelas grandes cervejarias e tipicamente conhecido como malte-base, as artesanais costumam utilizar diversas combinações de malte-base + maltes especiais para produzir cervejas de alto padrão. Lá fora, alguns maltes especiais (i.e. Pale Ale e Malte de Trigo) são vendidos com preço de malte-base por serem utilizados em larga escala pelas microcervejarias. Aqui, o preço deles é de malte especial, cerca de 3 vezes mais caro do que o já mencionado malte-base.
H – Hardware
Aqui a palavra significa todo o equipamento necessário para a produção de cerveja. Atualmente, para quem tem capital de giro, é mais barato importar um equipamento inteiro para produção de cerveja (e pagar todos os impostos advindos de uma importação) do que comprar um equipamento de origem nacional.
I – Isenção de frete (a falta dela)
Quem já fez uma compra on-line e não pagou frete porque efetuou X reais em compras? Pois é, no mercado logístico brasileiro, não tem facilitador: quanto mais se compra, mais se paga frete.
J – juros altos
Vocês sabem o que é spread bancário!? Em termos simplificados, é a diferença entre a remuneração que o banco paga ao aplicador para captar um recurso e o quanto esse banco cobra para emprestar o mesmo dinheiro. O cliente que deposita dinheiro no banco, por exemplo, na poupança, está de fato fazendo um empréstimo ao banco. Portanto o banco remunera os depósitos de clientes a uma certa taxa de juros (taxa de captação). De forma análoga, quando o banco empresta dinheiro a alguém, cobra uma taxa pelo empréstimo, sempre superior à taxa de captação. A diferença entre estas duas taxas é chamada de spread bancário. O spread bancário no Brasil é o maior do mundo. O que isso significa para nós? Quando uma empresa vai solicitar financiamento bancário para crescer, a mesma paga juros muito altos, o que impacta no custo fixo. Mesmo com algumas linhas de crédito mais atrativas para a indústria, ainda há um longo caminho a percorrer.
L – lúpulo
Esta é fácil. Não cultivamos lúpulo e utilizamos ele (algumas vezes em excesso) nas nossas cervejas. Apesar de existirem esforços para cultivar lúpulo no Brasil, o lúpulo comumente utilizado ainda é importado.
M – mão de obra
O Brasil é conhecidamente o país número 1 em encargos trabalhistas, fazendo com que a mão-de-obra se torne um dos itens mais caros de uma empresa (The Economist). Além disso, temos poucos profissionais com formação técnica atuando no setor. Aqui valorizo o trabalho dos bier sommeliers, escolas técnicas e entidades que existem com o intuito de formar e informar as pessoas. Contudo, infelizmente estas entidades ainda tem um longo caminho pela frente, pois a falta de qualificação vai desde o profissional que mexe no grão até o profissional que serve o copo.
N – Normatização
As diretrizes e denominações ligadas à cerveja no Brasil são desatualizadas, e cervejas fora da classificação pagam mais por isso.
O – órgãos setoriais
Desunidos e/ou inexistentes, os órgãos setoriais não são engajados. A Brewers Association, entidade que representa as microcervejarias americanas, tem até força política em atuação, com monitoramento constante das representações estaduais. A falta de uma entidade com força similar por aqui faz com que não tenhamos uma língua comum com o governo, fazendo com que mudanças para melhor demorem mais para ocorrer.
P – pontos de venda desleixados
Todo mundo sabe mas ninguém tem coragem de falar: existem alguns pontos de venda que simplesmente vão na contramão do mercado cobrando demais por alguns produtos, ou utilizando margens de lucros fixas, dificultando a venda de produtos mais caros. Pior do que isso, são locais que não cuidam dos produtos da forma adequada, com linhas de chope sujas, por exemplo. Chope ruim = chope que não vende = dinheiro que não gira = prejuízo para todos na cadeia = aumento de preços para compensar o prejuízo.
Q – qualidade (a falta dela)
Esse é um dos problemas que pode, literalmente, acabar com o nosso mercado. Imagine que você nunca tenha comido coxinha de frango. Aí, pelo bem da ciência, por curiosidade ou por indicação de um mestre-coxinheiro ou um coxinha-sommelier, você dá uma chance e prova uma coxinha. Infelizmente, você deu azar e provou uma coxinha ruim, tudo bem. Você estava na rodoviária de Porto Alegre, quem mandou!? Mas se você prova de novo, e de novo, em lugares diferentes, e as coxinhas continuam desagradáveis, as chances são de que você naturalmente concluirá que “não gosta de coxinha”. Aí você visita o Frangó em SP ou o Nossa Senhora do Ó em POA e deixa de provar uma coxinha fantástica porque as outras experiências que você teve no passado não foram boas. Existem alguns empresários que, em um impulso de querer participar do momentum de mercado de cervejas artesanais, entram sem saber o que estão fazendo e criam um produto “meia-boca”. O que estas pessoas não se dão conta é que, se fizerem um produto ruim, não apenas o produto deles não vai vender, mas isso afasta o consumidor do mercado todo. Dedicação e paixão pelo que faz são requisitos obrigatórios das pessoas envolvidas em qualquer meio que está começando, pois tal meio exigirá mais energia do que o normal para que o mesmo seja transformado. Nessas horas é bom se lembrar do mantra “I am a craft brewer”: paixão, dedicação e qualidade acima de tudo são fundamentais. Se você não está nessa para dar o melhor de si e criar um produto de qualidade, nem comece.
R – ROI (return of investment)
O retorno do investimento de uma cervejaria nos EUA hoje é de cerca de 1,5 anos. Aqui, a média é de 5 anos.
S – suprimentos
Diversos materiais de trabalho precisam ser importados pois ou não existem, ou não há como compra-los em pequena quantidade, o que diminui o capital de giro de uma empresa.
T – tributação
Esse não dá nem vontade de falar. Já conhecido da maioria, os impostos na cerveja estão girando na casa dos 50% do preço do produto. Em países com tradição cervejeira, como Alemanha e EUA, se aplicam conceitos como os de taxação progressiva (Alemanha), onde cervejarias menores pagam menos taxas nos seus produtos, ou ainda o flat tax discount, ou seja, descontos fixos de acordo com o volume da produção, sistema adotado no mercado americano. A titulo de exemplo, cervejarias pequenas nos EUA pagam virtualmente 0% de impostos até os primeiros 5 milhões de litros produzidos desde a criação da empresa.
U – união dos povos (a falta dela)
Já comentado de forma extensa em revistas, blogs, etc. Quanto mais desunidos formos, menos saberemos como trabalharmos juntos para resolver os problemas e mais teremos que trabalhar para resolver os nossos problemas sozinhos. O que isso impacta no custo? Através de parcerias e acesso a informação, existe virtualmente uma infinidade de formas de se reduzir custos de produção. Cito como exemplo a cooperação entre as cervejarias do bairro Anchieta, em Porto Alegre, para compra de garrafas: como forma reduzir o impacto do frete, juntamos todas as cervejarias interessadas em adquirir garrafas e compramos uma carreta de pallets diretamente do fabricante, ao invés de comprarmos poucas unidades para cada um de forma independente. União é um traço natural da evolução humana: quando em situações adversas, o ser humano tende a se unir para sobreviver. Os que não se adaptam, padecem.
V – vontade política (a falta dela)
O governo está recém nos descobrindo. Ainda precisa se adaptar à nossa realidade. Para isso, precisamos dar um (ou vários) empurrõezinhos, em ações como a da recente reunião do MAPA em Brasilia, por exemplo. Nesse sentido, ações isoladas de qualquer indivíduo também fazem a diferença. Se você conhece alguém com influência política, a sua voz pode fazer a diferença.
X – xenofilia
Se xenofobia significa aversão a estrangeiros, xenofilia significa amor a eles. O brasileiro tende a valorizar mais o produto importado, relegando o produto nacional para um segundo plano. OK, gosto não se discute. Nosso trabalho enquanto cervejeiros é o de fazer cerveja boa. Fazendo isto, nosso espaço de mercado está garantido. Mas o pior é quando isso ocorre na esfera governamental, onde os produtos importados chegam no país com preços mais baratos do que o produto nacional. Isso afeta o preço pois, ao não consumir o produto local, o mercado não se movimenta.
Z – zeófagos
Diz-se do que se alimenta de milho. Se podemos dizer que temos algum concorrente, esta é a ignorância do consumidor, daquele que ainda consome “cervejão” rico em milho e arroz. Quanto mais curarmos as pessoas da zeofagia cervejeira que domina o mercado, mais a produção nacional se movimenta, mais opções teremos e o preço consequentemente reduzirá. É a boa e velha lei da oferta e procura. “Cervejão é coisa de zeófago!”
Falei lá no início que transformações são lentas. Isso é fato. Hoje quando se fala em cerveja no Brasil, muita gente diz “é muito caro”. Isso é um problema enorme! Se não quebrarmos esse problema em partes menores, nunca iremos resolve-lo. O que tentei fazer aqui é mostrar algumas das partes do problema, pedir ajuda a todos para resolvê-lo de forma colaborativa e, mais importante, celebrarmos as nossas vitórias juntos. Devemos comemorar cada transformação que nos aproxima do nosso objetivo, pois isso serve como um lembrete do porque estamos fazendo tudo isso e nos aproxima cada vez mais. Se você está envolvido no mercado cervejeiro de alguma forma, é hora de abraçar as suas responsabilidades para o crescimento do mercado. Se você é um consumidor, lembre-se que você também tem uma força enorme enquanto formador de opinião, o que também pode ajudar o mercado como um todo. O discurso parece populista, mas é 100% verdadeiro: juntos somos mais fortes, tem mais carne pro churrasco e mais cerveja saindo nas torneiras. A união não faz só açúcar, faz mais cerveja também!
* Leonardo Sewald é proprietário da Cervejaria Seasons, de Porto Alegre (RS).
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