A cerveja, do Egito à nossa mesa

Tutankhamunale

por Daniel Ramiro*

Olá confrades e confreiras! Agradeço a participação neste blog e pretendo trazer a vocês alguns “causos” histórico-cervejeiros e/ou divagações antropo-sociológicas acerca deste nobre líquido que move muitas almas neste mundo.

Poderia começar pontuando as primeiras produções cervejeiras no mundo. Esquivo-me disso, porém, apenas aponto o Crescente Fértil como área ímpar não só do desenvolvimento desta bebida mas também como ponto de partida da civilização humana.

crescente-fertil

Não cabe aqui, portanto, estabelecer uma competição pelo povo que primeiro chegou à receita da cerveja, sendo ele sumério (o mais provável), babilônio ou egípcio. Fato é que, dentro da historiografia antiga, o Egito é a civilização mais estudada. Dentro disso, detemos mais conhecimento sobre sua cultura, produção material, dinastias e cotidiano. Sabemos que nas orações fúnebres eram requeridos pão e cerveja, além de aves e bois ofertados aos mortos.

A cerveja de Tutankamon

A produção de cerveja egípcia pôde ser conhecida por nós através das cenas pintadas nas paredes de certas tumbas. Colocavam, na água quente com trigo triturado, pedaços de pão de cevada ou de trigo mal cozidos, pois perceberam que assim alguma coisa acontecia em benefício do que sabemos hoje ser a fermentação. Então, filtrava-se o líquido espesso e deixava-o descansar em jarras de cerâmica.

Este método é ainda seguido, com algumas adaptações, no Egito, dando origem a uma cerveja mais rústica chamada de Bouza. Ao lado dessa técnica ancestral, a Scottish & Newcastle Brewery tentou reproduzir, em 1996, uma cerveja faraônica: a Tutankhamun Ale (foto no topo deste artigo), fruto de uma parceria desta cervejaria com arqueólogos do departamento de exploração egípcia da Universidade de Cambridge. O ponto para a receita esteve na descoberta da cozinha do Templo ao Sol da rainha Nefertite, esposa de Tutankamon (século XIV a.C.). A partir daí, examinaram resíduos em jarros de produção, decifraram hieróglifos e escavaram mais de 10 salas de produção de cerveja.

Outro exemplo de como as pesquisas históricas podem enriquecer nosso repertório de degustação veio do Japão. A cervejaria Kirin, em associação com um egiptólogo da Universidade de Waseda – Tóquio produziu, em 2002, a cerveja Antigo Reino. Esta possuia uma receita historicamente anterior à outra em pelo menos 1000 anos, a qual contou com bactérias lácticas para proporcionar o amargor desejado, desdobrando-se também em um sabor mais ácido.

As cervejas ancestrais eram gostosas?

Certamente não temos um parecer de quão próximas das cervejas antigas estas estiveram, pois as percepções que temos dos gostos dos alimentos e dos líquidos passam pelas lentes culturais. O sabor de alguma coisa pode ser generalizável dentro de um referencial, mas o gosto que sentimos é mais particularizado. Não só culturas diferentes como também épocas diferentes possuem referenciais distintos para o que sentem do contato gustativo de um mesmo alimento.

Prova disso, em um recorte mais preciso, é o próprio amadurecimento gastronômico pelo qual passamos ao entrar em contato com a diversidade cervejeira existente: lembra-se da primeira sensação que teve ao degustar uma India Pale Ale? E hoje, como é essa sensação, é possível qualifica-la em relação à experiência primária?

É por essas e por outras que tais receitas não chegaram a ter uma expressiva produção, tampouco uma tentativa de entrada competitiva no mercado cervejeiro. Pela curiosidade em degustá-la, merecia o investimento (a Tutankhamun Ale chegou a vender uma edição limitada em 1000 garrafas), mas não seria sustentável para uma cervejaria. Seu gosto, bem como seu próprio visual e aromas, não seriam, talvez, bem recebidos pelos humanos do século XXI.

DanielRamiro

 

*Daniel Ramiro é antropólogo, sommelier de cervejas (Doemens/Senac) e professor de História. O artigo acima teve como fonte o blog da Confraria St. George, da qual faz parte.

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Nota do Editor: A cervejaria artesanal americana Dogfish Head é notória no meio cervejeiro por fazer experiências “cervo-arqueológicas”, reproduzindo cervejas cujas receitas remontam a milênios. Leia o artigo Cervejas Milenares para saber mais sobre essas brejas.


Comments

4 responses to “A cerveja, do Egito à nossa mesa”

  1. Lembrando que a italiana Baladin tem a NORA, a que chamam “Birra Egizia”. Maravilhosa.

    Uma Nora para sogra nenhuma botar defeito.

  2. Daniel, adorei sua participação aqui!!!Escreva mais, adoro recontar esses “causos” de cerveja!!Parabéns!

  3. Ricardo Avatar
    Ricardo

    Muito bom, você tem a receita do antigo egito?

  4. António Heleno Avatar
    António Heleno

    Carissimo,

    Soube que esta cerveja era vendida sob encomenda a um preço de cerca de 50€ a garrafa.
    Por acaso sabe onde a encomendar e qual o preço correcto?

    Obg.

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