Eram quatro, e todos se reuniam religiosamente todas as quartas depois das sete na parte de trás da casa do Ado, que tinha uma churrasqueira e um balcão de mármore. O Ado, diligente, sempre montava mesas e cadeiras de madeira por ali, mas as quatro almas botequeiras sempre as ignoravam, preferindo o reconfortante contato do cotovelo no balcão, enquanto a picanha queimava e a cerveja descia.
O tema dos papos era sempre variado. O que não variava de jeito nenhum era a marca de cerveja, aquela do jogador de futebol. Era sempre aquela, e se não tinha aquela, o motim se instalava e perigava do churrasco de quarta nem acontecer.
Acontece que o Ado, ultimamente, vinha tendo idéias estranhas e inconfessáveis ao resto do grupo. Fissurado em internet, havia descoberto quase por acaso, através dos blogs cervejeiros, que existiam mais cervejas além daquela do jogador de futebol, ou mesmo daquela que era só pra servir “gelaaada”. No começo, incrédulo, resolveu pinçar algumas brejas “diferentes” no supermercado. O hábito foi pegando, e agora o Ado cometia até mesmo o desplante de encomendar cervejas “diferentes” nas lojas on-line. Em pouco tempo, já conhecia as diferenças entre elas e constatava, com um certo horror envergonhado, que a cerveja das quartas já não descia tão bem quanto antes.
Resolveu, então, encarar seus medos perante a rapaziada. Como era sempre o responsável por abastecer o isopor dentro do qual os quatro metiam a mão e sacavam as latinhas de sempre, decidiu espalhar por ali, semi-escondidas em meio às pedras de gelo, algumas cervejas “diferentes”. Numa quarta meio abafada, a turma chegou como sempre, acomodando-se ao redor do balcão, e começaram os trabalhos.
O primeiro a afundar a mão no gelo e sacar uma breja que não era “a mesma” foi o Binho Errado (o Binho Errado era chamado assim para diferenciar do Binho Certo, seu irmão. O Binho Errado só insiste que o Binho Certo é ele).
— Upa! Quequéisso? – perguntou, segurando uma garrafa de Heineken pelo gargalo.
— Tá virando bicha, Ado? – inquiriu o Cunha, que perde o amigo mas nunca o timing do sarro a ser tirado.
— Cerveja importada. Bebe aí! – retrucou o Ado, fingindo despreocupação, mas intimamente tremendo de medo da turma o considerar, de fato, bicha.
O Mauro interveio.
— Se não virou veado, ta ficando é rico. Tomando cerveja importada! Conta aí pra gente, Ado!
— Nada, quase o mesmo preço das nacionais. Toma aí, Binho!
O Binho Errado, após dizer que se era assim, então o Ado tinha mesmo se aviadado, topou o desafio. Abriu a garrafa, despejou no copo e tomou o primeiro gole.
— É amarguinha – disse o Binho Errado, mas com cara de surpresa – Tem mais aí?
— Tem essa aqui ó, mais suave – e sacou do gelo uma Hoegaarden.
— Cerveja belga, Ado? Depois fala que não ta ficando milionário! – lançou o Mauro.
Dessa vez, os três fizeram questão de provar. Para incredulidade do trio, a breja era mais que boa. De fato, era uma delícia. O Cunha estalou a língua e disse que tinha gosto de erva-doce. Tem mais?
— Essa aqui é brasileira, experimenta! – e pôs no balcão uma Colorado Indica.
A rapaziada ficou observando o rótulo diferentão. Agora era o Mauro que queria experimentar.
— Amarguinha, mas é um amargo gostoso, doce, sei lá. E nem parece cerveja escura.
Então o Ado, com muito jeito, foi explicando o que cada breja tinha de mais diferente. Explicou que aquele amargo era o lúpulo, que fazia tanta falta nas cervejas “de sempre”. Disse que, em muitos casos, os preços não eram assim tão mais altos do que as “normais”. Didaticamente e sem pedantismo, falou que existia um porrilhão de outros estilos de cerveja no mundo, e que a turma estava era perdendo tempo de não conhecer o maior número possível deles.
E o papo, definitivamente e para alívio e glória do Ado, descambou para a cerveja, ante o interesse geral. E foram descendo Leffe Blonde, Baden Baden Red Ale, Devassa Ruiva, Bamberg Weizen, Weihenstephaner Vitus… No final, Ado propôs voltarem a tomar a breja do jogador de futebol. Aberta a primeira latinha, Binho Errado fez muxoxo:
— Aí é sacanagem. Depois dessas aí, essa aqui ficou sem gosto.
E deixou a latinha de lado, cujo conteúdo foi jogado na pia pelo Ado depois do churrasco. A turma estava beer evangelizada.
Agora, as quartas-feiras são mais aguardadas. Uma vez tratar-se de churrasco, as Pilsen ainda são preferidas – embora as “de sempre” tenham sido substituídas por outras que honram o estilo – mas quem chega sempre traz uma ou outra “novidade” pra compartilhar com a rapaziada. E, de fato, não poucas foram as quartas em que somente as novidades foram consumidas.
Alegremente, os caras giram os copos, metem os narizes nas cervejas, comentam sobre os rótulos. Mauro e Cunha viraram fissurados em cervejas mais escuras, alcoólicas e encorpadas. Binho Errado é mestre em falar sobre as brejas de trigo.
E ninguém mais fala que o Ado virou veado.
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