O seriado televisivo norte-americano Lost fez sucesso global e marcou época, tanto que até hoje, mais de um ano após seu fim, ainda existem os chamados “losters”, como são chamados os fãs da série. Apesar do furor, entretanto, a maioria dos losters mundo afora não escondeu a decepção com o último capítulo do seriado. É que, ao longo dos anos em que foram exibidos, os autores dos episódios foram criando tantos mistérios que, no final, acumuladas, as pretensas explicações não fizeram muito sentido, deixando uma infinidade de pontas soltas e perguntas sem resposta.
O nascente mundo das cervejas especiais do Brasil, quem diria, vive atualmente uma situação digna do seriado, tudo por conta das cervejas artesanais americanas Flying Dog e Anderson Valley, trazidas ao país pela Tarantino Importadora, empresa sediada na capital paulista. A partir de dúvidas sobre o prazo de validade das brejas, as Flying Dog deixarão de voar por estas bandas, pelo menos temporariamente.
No Fórum, a cizânia
O imbrólio começou há cerca de um mês aqui mesmo “em casa”, no Fórum do BREJAS, com um tópico aberto pelo forista Fernando Pacheco. Ele relatava que, num bar em São Paulo, havia encontrado cervejas Anderson Valley com dupla etiquetagem de prazo de validade, sendo que a segunda etiqueta, com prazo mais elástico do que aquele aposto pelos americanos, teria sido aplicada pela Tarantino.
No mesmo tópico, num primeiro momento, a importadora se manifestou dizendo que estaria verificando a denúncia. Dias mais tarde, já com a dúvida pairando também sobre as Flying Dog, anunciou que as etiquetas não haviam sido alteradas, e que possuía documentos que comprovariam a legalidade da segunda etiqueta, pontuanto que a data grafada pelos americanos seria a “data do frescor”, e não a data de validade. Concluiu escrevendo que aquele era seu “pronunciamento final”, e desde então, publicamente, não disse mais palavra.
As discussões subiram perigosamente de tom quando pipocaram acusações de “golpe” no Fórum, tanto que este escriba resolveu fechar o tópico por ofensa aos Termos de Uso do BREJAS, o qual proíbe imputações criminosas.
Ao invés de aquietar-se, o assunto ferveu ainda mais. Em resposta a e-mails que Pacheco trocou com os americanos da Anderson Valley — nos quais enviou, a pedido destes, o número dos lotes das cervejas –, estes assim se manifestaram em 11/2 (as mensagens originais, em inglês, encontram-se neste tópico):
“Fernando, nós determinamos que (as cervejas) que você comprou têm dois anos de idade. (…) Isto é suficiente para você conversar com o varejista para que você receba o seu dinheiro de volta.”
Cachorros voando de volta pra casa
Já com o pessoal da Flying Dog, a conversa foi mais séria e teve um final desastroso. Ao saber que suas cervejas não estavam chegando “frescas” ao país, a cervejaria decidiu simplesmente suspender a exportação dos cães voadores (o histórico dos e-mails está neste tópico):
“Chegou ao nosso conhecimento que nossa cerveja fresca não pode ser entregue de forma consistente para os nossos fãs no Brasil, devido às regulamentações do governo brasileiro e logística de transporte. Devido a algumas preocupações sobre a qualidade da nossa cerveja no Brasil, interrompemos novos embarques. É lamentável, porque recebemos muitos comentários positivos sobre a nossa cerveja no Brasil. Você (Fernando Pacheco) não deve se sentir pessoalmente responsável por isso.”
Detonada a bomba, o Fórum do BREJAS tem vivido dias especialmente movimentados, com cada participante se manifestando contra ou a favor da importadora e do forista, por vezes de forma exaltada. A discussão se espraiou no Twitter e no Facebook. Em comum, todos lamentam a interrupção das importações das Flying Dog, exemplo de cervejas da Nova Escola Americana, algumas rezando na cartilha das chamadas extreme beers.
Quem tem razão?
O BREJAS tem frequentemente entrado em contato com a Tarantino Importadora a fim de que esta apresente, enfim, as explicações e os documentos que diz ter comprovando sua boa-fé. Em última conversa, realizada ontem por este que vos escreve, a empresa disse que está orientada por seu advogado a apresentar os ditos documentos somente em juízo, no caso de ter que defender-se judicialmente de algum questionamento sobre a validade das cervejas que revende.
Já o forista Fernando Pacheco se manifestou, enviando o seguinte texto, publicado a seguir, na íntegra:
“Alguns meses atrás percebi que as cervejas que mais gosto, as americanas Flying Dog e Anderson Valley, estavam sendo vendidas com duas datas de validade à mostra. Uma da fabricante, já expirada, outra do importador, ainda válida. Além de denunciar a má prática comercial da importadora no fórum do Brejas, entrei em contato com ambas as cervejarias para entender melhor o que estava acontecendo. Tanto a Flying Dog Brewery quanto a Anderson Valley Brewing Company afirmaram que as cervejas que eu havia adquirido já estavam vencidas (out of date) e não deveriam mais ser comercializadas. A situação chegou ao absurdo de ter comprado uma caixa de cervejas, que segundo a cervejaria, haviam sido fabricadas dois anos antes, mas ainda válidas segundo o importador.
Em sua única manifestação sobre a polêmica, o importador afirmou ter laudos laboratoriais que o autorizariam a extensão da data de validade das cervejas. Também dizem que as datas impressas pelos fabricantes seriam apenas indicação de frescor ´ junto ao consumidor no competitivo mercado americano´. Se o mercado brasileiro não é competitivo, o padrão de qualidade do fabricante não precisa ser seguido?
Infelizmente, logo após a minha manifestação junto a Flying Dog Brewery, a empresa anunciou que suspenderia a exportação de suas cervejas ao Brasil. Segundo a representante da empresa, a suspensão ocorreu devido a ´preocupação sobre a qualidade das cervejas vendidas no Brasil´.
Rapidamente fui transformado em bode expiatório, sendo responsabilizado pelo fim da Flying Dog no Brasil. Diversos apreciadores da Flying Dog e até alguns comerciantes exibiram a sua raiva contra mim, no twitter e no fórum do Brejas. Para essas pessoas errado é o consumidor por reclamar. É como se o importador fosse aquele amigo que nos faz um favor, trazendo do exterior, escondida na mala, aquela cerveja preciosa. E não se reclama de quem nos faz um favor.”
Mercado imaturo
Faz dois anos que estive nos Estados Unidos em viagem exploratória cervejeira, quando somente poucas pessoas por aqui falavam na incrível Nova Escola Cervejeira Americana. Aproveitando o interesse que o assunto suscitou, a Tarantino Importadora pegou rapidamente o gancho e começou a trazer ao Brasil, de forma pioneira, as primeiras brejas norte-americanas. Dê-se à empresa esse crédito.
Por outro lado, as manifestações contra o forista Fernando Pacheco, demonizando-o pela interrupção da importação das cervejas, são a prova cabal da imaturidade do novo mercado de cervejas especiais no Brasil. Diga-se o que se quiser deste país, mas as nossas leis de proteção ao consumidor são as mais avançadas do mundo. Pacheco fez o que entendeu ser cabível, questionando o que lhe pareceu ser uma irregularidade. O fez, inicialmente, com uma certa acidez desmedida, é verdade. Mas lembremos que, no direito consumerista, caso a questão avance até as vias jurisdicionais, o consumidor possui status de hipossuficiência, acarretando a chamada inversão do ônus da prova. Trocando em miúdos, é da importadora o dever de demonstrar que uma acusação é inverdadeira.
Na opinião deste escriba, a recusa da Tarantino em vir à público apresentar as provas de sua lisura no caso em questão é um tremendo erro estratégico. Isso porque, se há pessoas com visões imaturas do mercado cervejeiro especial, o consumidor brasileiro, em linhas gerais, está “adulto”. Uma acusação desse calibre, grave a ponto de, sendo verdadeira ou falsa, interromper toda uma linha de importações, deveria ser explicada. O BREJAS está absolutamente aberto pra isso, a qualquer tempo!
Não se está pregando aqui qualquer espécie de Jihad ensandecida contra empresas que, de uma forma ou de outra, lutam a duras penas para emplacar produtos com novos conceitos, como as cervejas especiais, sejam importadas ou artesanais nacionais. Todos bem sabem que, às vezes, parece que tudo conspira contra a cultura cervejeira e seus instrumentadores, principalmente as restrições governamentais e impostos escorchantes.
Entretanto, no caso em questão, a ilha de Lost cervejeira ainda guarda a maioria dos seus mistérios. O último episódio da série, pelo andar da carruagem, ainda precisa de um roteirista hábil que dê coesão às respostas insepultas.
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